3 de set. de 2011

Cioran por Boué

A pintora catalã Maite Grau conversou com Simone Boué, a esposa de Cioran. O resultado foi uma agradável visão sobre particularidades da vida do pensador romeno.

 

Texto e tradução: Leandro Marcio

 

Simone Boué (1919-1997) foi a fiel companheira de Cioran. Apesar disso, o nome dela não aparece em nenhum de seus livros: com exceção de singelos “nós” empregados em algumas de suas anotações, a figura de Simone raramente é lembrada quando se trata do pensador romeno. Mantiveram, porém, uma relação duradoura: mais de cinco décadas juntos, até a morte de Cioran em 1995. Simone morreu dois anos depois.

 

A conversa abaixo é uma tradução do original publicado no número 99 de El Malpensante, uma revista literária de Bogotá. Como eles mesmos dizem, “El Malpensante es una revista literaria, es decir preocupada por el buen estilo, por el enfoque no convencional, por el humor tirando a oscuro; que quiere meterse con toda suerte de temas con un enfoque inesperado”. Publicada desde 1996, a revista tem sido um importante veículo de discussão cultural na Colômbia. Agradecemos a Mario Jursich, um dos fundadores da revista, a gentileza de nos permitir a divulgação dessa tradução. Saludos!

 

Como vocês se conheceram?

 

Eu o conheci em 1941. Fui estudar em Paris, graças a uma bolsa de estudos. Eu vinha do interior e me estabeleci em uma residência de estudantes no Boulevard Saint Michell. A residência tinha um restaurante universitário onde qualquer estudante podia ir comer e, por isso, sempre havia longas filas. Um dia Cioran apareceu tentando furar a fila, e foi assim que o conheci.

 

Uma das principais obsessões de Cioran era o idioma. Quando você o conheceu ele tinha chegado há pouco em Paris, e ainda escrevia em romeno. Como Cioran viveu essa mudança tão fundamental?

 

Cioran estava em Paris desde 1937, escreveu e publicou cinco livros em romeno, mas ele tinha consciência de sua limitada divulgação. Em 1947 ele fez um teste: tentou traduzir uns versos de Mallarmé para o romeno e essa experiência foi para ele uma revelação, percebeu a falta de sentido de continuar escrevendo em romeno; a partir de então decidiu romper com a sua língua materna e começou a escrever Breviário de decomposição, seu primeiro livro em francês.

 

Cioran disse que o reescreveu quatro vezes.

 

A mudança de idioma foi muito difícil para ele, dizia que era como vestir uma camisa de força. Quando ele escrevia em romeno era mais livre, seu estilo era mais visceral. Romeno é muito lírico, muito intenso e cheio de repetições. Isso não funciona em francês. Por isso escreveu uma e outra vez até conseguir que seu livro não soasse “meteco”.

 

Como era a influência francesa sobre Cioran?

 

Muitos dos romenos, além dos  intelectuais, que viviam em Bucareste falavam francês, mas Cioran vinha da Transilvânia, que era uma área completamente diferente, governada pelo Império Austro-Húngaro. A cidade natal de Cioran, Sibiu, era também parte da Hungria e possui parte da cultura romena.  Mas há também as culturas alemã e húngara, e o nome das ruas é escrito nos três idiomas. Assim, tanto o romeno quanto o húngaro eram línguas maternas para ele.

 

Alguma vez ele considerou voltar à Romênia?

 

Não, não podia. Seu irmão foi enviado para a prisão por sete anos e sua irmã passou quatro anos na construção de um canal, uma espécie de pena de trabalhos forçados, onde muitas pessoas morreram. Ela também era uma grande fumante, consumindo cerca de dez maços por dia. Morreu em 1966. Sua mãe morreu um mês antes. Cioran sempre dizia que sua família foi atacada por uma loucura. Eu me lembro que foi convidado pelo embaixador francês a visitar a Romênia para apresentar alguns dos seus livros, mas o convite o ofendeu muitíssimo. Ele disse: “Como se atreve a me convidar para o meu país?”. É claro que não aceitou. Depois da revolução na Romênia perguntei por que não ia, e sua resposta foi que não queria ir porque muitos de seus amigos ainda estavam vivos e não queria vê-los. O único lugar onde realmente gostaria de ter voltado era para seu povoado, em Sibiu.

 

Ele freqüentava os círculos intelectuais?

 

Não estava muito interessado em escritores, lhe interessava as pessoas comuns, mas não escritores. Claro que houve exceções, era amigo íntimo de Henri Michaux, inclusive escreveu sobre ele. Também gostava muito de Beckett, como autor e como pessoa.

 

Em seus textos, por vezes, Cioran enaltece aos mendigos. Ele tinha algum amigo mendigo?

 

Sim, tinha um grande amigo, um vagabundo, que vinha visitá-lo ocasionalmente, até que um dia ele desapareceu e então nunca mais tivemos notícias. Ele sempre dizia que esse homem era o único que ele tinha conhecido com uma cabeça verdadeiramente filosófica.

Quando escrevia ele se sentia sempre desesperado, escrevia para se livrar de sua angústia. Eu tento me consolar pensando que não pude ser tão infeliz como quando ele diz ‘Só escrevo quando quero me matar.’

Lia muito?

 

Sim, era um escape para ele. Quando Cioran esteve no hospital, poucos meses antes de sua morte, o diretor da Fundação Doucet – uma fundação que se dedica à preservação de manuscritos – me propôs cuidar dos manuscritos dele. Eu estava com medo que depois de sua morte todo mundo tentaria apropriar-se deles e pensei que nessa fundação estariam seguros. Ao coletar todo o material para entregar à Fundação, encontrei três cadernos em uma maleta. Nesses cadernos estava escrito na capa “para ser destruído”.

 

Decidi mantê-los comigo por um tempo antes de entregá-los à fundação. Quando eu os li, foi extraordinário, como se esses textos revelassem-se um segredo. Notei suas inseguranças e sua constante sensação de fracasso pessoal. Ele dizia coisas como “Eu não estou fazendo nada, eu não posso escrever…”. Também descrevia ali sua perpétua compulsão pela leitura, que para ele era uma forma de terapia, a única maneira de não perder tempo. Quando escrevia ele se sentia sempre desesperado, escrevia para se livrar de sua angústia. Eu tento me consolar pensando que não pude ser tão infeliz como quando ele diz “Só escrevo quando quero me matar.” Em seus cadernos de notas estão frases como: “foi uma noite terrível, eu não consegui dormir um minuto.” Utilizava esses cadernos como rascunhos de trabalho, por exemplo, para escrever aforismos. Nesses cadernos podemos ler três ou quatro versões de alguns aforismos, e em cada uma delas se observa um avanço no sentido da brevidade, da concisão.

 

Como era a biblioteca de Cioran?

 

Certamente teve seus livros, alguns cheios de anotações. Mas principalmente, pegava-os das bibliotecas. A princípio ia para a Sorbonne, mas logo encontrou um lugar que gostou mais, o Instituto Católico. É mais perto de casa e se dava muito bem com o bibliotecário. Cioran consultou muitos livros. Costumava dar cigarros aos empregados para que lhe atendessem bem e trouxessem os volumes estranhíssimos que às vezes necessitava com urgência. Ele era muito querido por alguns bibliotecários.

 

Cioran esteve sempre muito preocupado com a religião. Ele tinha alguma relação com pessoas crentes?

 

Foi muito amigo do filósofo católico Gabriel Marcel, que era uma pessoa extraordinária, de certa forma um pouco naïf. Adorava Cioran, embora horrorizava-se absolutamente com o que Cioran escrevia. Por um tempo, Marcel foi um crítico de teatro e tinha que assistir a muitas estréias para enviar críticas no dia seguinte. Freqüentemente convidava Cioran, e alguns minutos após o início da peça, Marcel, que já estava ficando velho, dormia e até mesmo roncava. Confiava muito em Cioran e sempre lhe pedia conselhos. Com seus conselhos, ele escreveu muitas de suas críticas. Suas opiniões sempre conseguiam tranquilizá-lo e o estimulavam a escrever.

 

Lembro-me de um dia que Cioran tinha saido, chegou Marcel desesperado, estava acontecendo a crise dos mísseis em Cuba e Marcel estava muito preocupado. “O que vai acontecer! Uma nova guerra… !” Eu não sabia o que dizer e, então, sugeri que ele fosse dormir. Marcel ficou encantado e disse-me: agradeço-lhe muito, senhora, agora mesmo vou chamar Raymond Aron, que também está muito angustiado. Surpreendentemente, o meu conselho funcionou e os dois foram dormir.

 

Em geral, Marcel foi muito simpático conosco. Lembro-me que tinham pedido a Cioran um prefácio para uma edição nos Estados Unidos da obra de Valéry. Pagariam uma boa quantia de dinheiro. Cioran sempre tinha dificuldades financeiras, sempre estava dependendo de bolsas de estudo, e por isso aceitou. Veio a Paris um representante da fundação responsável pelo pedido para falar com Cioran sobre isso. Era um homem encantador da Geórgia, com maneiras muito cavalheirescas e um inglês que não soava ofensivamente americano. Em todas as vezes que o vimos perguntava a Cioran se estava trabalhando no prólogo e ele espondia que ainda não tinha começado. Quando ele finalmente conseguiu terminar o prólogo saiu um texto totalmente contra Valery, apesar de muito admirá-lo. Ele enviou-o para o americano, que estava de volta aos Estados Unidos. Uma manhã – eu vou lembrar sempre – Cioran estava pálido, tremendo de raiva, com uma carta nas mãos. Seu texto tinha sido rejeitado. Cioran não acreditava que aquele sujeito tivesse a suficiente capacidade intelectual para rejeitar o seu texto. Estava indignado e começou a escrever cartas em resposta, todo os dias, todas as horas. Mostrava-me as cartas e eu lhe dizia: está ótima, envie-a amanhã de manhã. Mas a manhã vinha e ele não as enviava. Cioran não sabia o que fazer e, além disso, precisava do dinheiro. Então, pensou em mostrar o prólogo a Gabriel Marcel, para que desse uma opinião sobre sua qualidade. Marcel estava ficando cego, mal conseguia ler, e como Cioran estava ardendo de ira e muito nervoso, tive que lê-lo. Marcel escutou em silêncio e, no final, disse que o texto era admirável, e que ele iria escrever uma carta a outro editor. Finalmente, Cioran recebeu o dinheiro e o prólogo foi publicado na França. Então eu percebi que sempre que lhe encarregavam de escrever algo sobre um autor, não podia evitar de escrever algo contra esse autor, mesmo gostando muitíssimo dele. Somente com Beckett era moderado. Mas mesmo assim, quando foi publicada uma antologia de textos sobre Beckett, um editor optou por não incluir um texto de Cioran, talvez porque Cioran, quando falava de alguém, falava basicamente de si mesmo e sua visão de mundo.

 

Quais foram suas leituras habituais, seus livros de cabeceira?

 

Até o fim leu biografias ou memórias, dizia que a leitura de memórias o dispensava de não ter uma biografia interessante. Também lia muitos romances.

 

Os místicos o interessavam muito.

 

Sim, ele escreveu em um livro na Romênia sobre eles, Sobre lágrimas e santos, um livro que chocou seus pais. Quando o leram não conseguiram admitir aquilo, sua mãe escreveu-lhe dizendo que ele não deveria ter publicado semelhante livro enquanto eles vivessem. Eliade escreveu um artigo contra, mas também tinham opiniões favoráveis e que o contentaram. Por exemplo, uma que alegava que era o livro mais religioso que tinha sido publicado nos Balcãs …

 

É interessante como, desde o seu primeiro livro aos vinte anos, mantém-se praticamente os mesmos temas e as mesmas obsessões.

 

Sim, de fato, os temas são sempre os mesmos. O primeiro livro traduzido para o francês foi Sobre lágrimas e santos. Foi traduzido por uma mulher e Cioran não gostou nada da tradução. Ela era filha de um diplomata romeno que tinha sido educada nas melhores escolas privadas da França. Seu francês era perfeito, mas em sua tradução faltava a alma de Cioran, a acidez, o sarcasmo… Uma tarde, essa mulher chegou e começou a ler o que tinha traduzido. Cioran a interrompia o tempo todo, horrorizado, com as mãos na cabeça. Eu me sentia horrível. Cioran era muito educado, mas nas coisas que lhe diziam respeito diretamente podia ser agressivo; dizia “Oh não, não, corta, corta, não faz sentido.” Às vezes dizia: “Eu disse isso? É bobagem, não entra”. A coisa levou à reformulação do texto em que tanto a mulher quanto Cioran sofreram enormemente. Ela estava muito chateada, não conseguia entender por que ele queria eliminar parágrafos inteiros que ela gostava muito. Inclusive, mais tarde, escreveu um artigo sobre Cioran em que se referia a ele como “o podador”. Quando chegava pela manhã para trabalhar na tradução perguntava a ele: “O que você vai cortar hoje?”. Finalmente, a tradução foi reduzida a um terço do original.

 

Então eu percebi que os textos romenos de Cioran eram muito mais barrocos. Acho que o inglês e o alemão são as línguas mais propícias para o romeno de Cioran.

 

Cioran tinha uma idéia prévia e estruturada de um livro ou escrevia em instantes de arrebatamento?

 

Eu acho que Cioran era primariamente um articulista ou um escritor de textos curtos.

 

Os aforismos são um exemplo destas tendências que finalmente foram cruciais. Após a publicação de Breviário de decomposição, a Nouvelle Revue Française, que se baseava em Gallimard, ofereceu a ele a oportunidade de escrever uma série de artigos. Cioran não podia recusar depois que ele publicou seu primeiro livro em França. Estava desesperado com esses artigos porque custava muito terminar na data que lhe pediam. Da mesma forma que escreveu esses artigos, escreveu a maioria de seus livros em francês. Eram ensaios curtos, vinte ou trinta páginas. O editor da revista o encorajou muito para que escrevesse esses textos, e inclusive, um pouco mais para a frente, começou a pagar um salário mensal que lhe permitiu viver economicamente tranqüilo. Isso foi fundamental para Cioran, um homem sem renda fixa. Quando ele parou de fumar e beber café a todo o instante mudou radicalmente sua forma de escrever. Então começou a escrever exclusivamente aforismos. Dizia que não poderia nunca mais escrever artigos ou ensaios.

 

Para terminar, as críticas que você fazia o incomodavam?

 

Cioran gostava muito de fazer trabalhos manuais, costumava dizer que quando andava existia apenas graças ao movimento, e ao trabalhar com as mãos existia de forma mais intensa. Consertava todos os defeitos da casa, se tinha que chamar um técnico ficava o tempo todo olhando seu trabalho, tentando aprender. Devo dizer que todos os reparos feitos por ele eram muito fortes, para toda a vida, mas geralmente volumosos e feios, com muita fita ou corda. Quando eu fazia alguma crítica aos seus consertos, se irritava muito. Aceitava as críticas ao seu texto, mas não em seus trabalhos manuais…

 

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Fonte: Ugrapress

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