3 de set. de 2011

Emil Cioran e a crítica ao pensamento utópico

Daniel Artur Emidio Branco (*)

 

cioran

O tempo como realidade imutável

Na obra História e Utopia Cioran exprime, por meio da análise da Queda do primeiro homem, segundo consta no livro bíblico do Gênesis, a trágica condição do gênero humano diante da História. Esta, por sua vez, advinda com a Queda, nada mais é do que a repetição da essência desse primeiro ser. Desta forma, se desenvolve a idéia de que todas as eras e civilizações nada sabem de novo, pois, embora existam diferentes civilizações, costumes e épocas, a essência do homem sempre é a mesma. Daí parte a crítica à Modernidade e a Filosofia Moderna que, segundo Cioran, não puderam perceber que, por mais que se tente fazer da História um veículo de esperança para o progresso, há na humanidade uma essência caída que é irreversível.

 

O exercício filosófico não é fecundo: é apenas respeitável. Sempre se é filósofo impunemente. (…) Os verdadeiros problemas só começam após havê-la percorrido ou esgotado, após o último capítulo de um imenso tomo, que põe o ponto final em sinal de abdicação ante o Desconhecido, onde se enraízam todos os nossos instantes, e com o qual precisamos lutar, porque é naturalmente mais imediato, mais importante que o pão cotidiano. Aqui o filósofo nos abandona: inimigo do desastre, ele é sensato como a razão, e tão prudente quanto ela (CIORAN, 1989, p.55).

 

Mediante a Insônia é que, entretanto, para Cioran, um indivíduo pode tornar-se lúcido diante desta realidade, como relatado em Breviário de Decomposição. Para tanto, é preciso ser escolhido. A Insônia, segundo o seu pensamento, não é buscada pelo homem. Ao contrário, ela é que o escolhe. Este domínio, tanto da fisiologia como da meteorologia, marca o pensamento cioraniano. Desta forma, com a crítica ao progresso histórico, o autor revela que a sociedade pós-moderna, uma vez caído o espírito de progresso da modernidade, tende a reviver sentimentos negativos. Tais sentimentos, como tirania, rancor e ódio, inerentes a períodos de decadência, são pré-requisitos para a decência intelectual.  Sendo assim, a filosofia cioraniana “investiga” o seu tempo e não propõe ao atual momento mudanças, utopias ou progresso, o que faz deste período um pequeno alívio diante da trágica História:

 

Ela [a História] não é o fundamento do ser, mas sua ausência, o não de toda coisa, a ruptura do vivente consigo mesmo: não sendo constituídos pela mesma substância que ela, nos recusamos a cooperar em suas convulsões. Pode nos esmagar à vontade, só atingirá nossas aparências e nossas impurezas, esses restos de tempo que ainda arrastamos, símbolos de fracasso, marcas de escravidão (CIORAN, 1994, p.141).

 

Quem está sozinho em uma rua, em meio a uma madrugada sombria, mesmo que seja um mendigo, um homem iletrado, é mais lúcido do qualquer filósofo ou intelectual acadêmico. Isto porque, malgrado ser dotado de razão, o homem racional não pode alcançar a verdade. O Ser almejado pelo racionalismo socrático, fundamentador da tradição filosófica, não passa de uma ilusão, de uma utopia. Ter um alvo, um objeto de estudo, não é possuir como finalidade a matéria, o corpo. Ao contrário, o fim a que se marcha em direção, quando se possui um caminho a seguir, é o “percorrer”, o “caminhar”. O homem não quer o Ser propriamente, quer é o “conhecer”. Acontece que o conhecimento não pode criar algo, porque aquilo que o intelecto busca, sempre lhe é superior. Uma vez subindo até ao mais alto monte da sabedoria, o homem desmorona, frustrado por não ter encontrado o que ainda procura. Com este pensamento, o autor franco-romeno sintetiza a História humana como a eterna repetição do pecado de Adão:

 

Ontem, hoje, amanhã: categorias para uso de criados. Para ocioso suntuosamente instalado no Desconsolo, e ao qual todo instante aflige, passado, presente e futuro são somente aparências variáveis do mesmo mal, idêntico em sua substância, inexorável em sua insinuação e monótono em sua persistência. E esse mal possui a mesma extensão do ser, é o ser mesmo (CIORAN, 1989, p. 60).

 

Quando o cientista afirma: “descobri algo novo”, se prova que ele está demasiadamente iludido com a sua utopia. Cioran afirma que ninguém pode sobreviver sem uma utopia. Envolver-se com esta, no entanto, requer a perda da lucidez. Quem é lúcido, contudo, não o é por escolha. A realidade se apresenta a tal homem sem que ele peça.

 

Não obstante houvesse uma ausência de pedido, sendo que Adão e Eva não pediram para serem criados, o real se lhes apresentou. No entanto, quiseram conhecer a realidade, na medida em que deram ouvidos à afirmação da serpente de que, se comessem do que lhes havia sido proibido, se ultrapassem os limites do corpo, se tornariam deuses, seriam conhecedores do bem e do mal. Por isto foram expulsos do Paraíso.

 

Uma das razões por que se pode negar a liberdade é o nosso fator meteorológico. A liberdade é uma ilusão, pois depende de coisas que não deveriam me condicionar. Minhas idéias são sempre ditadas pelos meus órgãos, os quais, por sua vez, são sempre ditados pelo clima. (…) Meu próprio mal-estar, de ordem climatológica, está ligado ao mal-estar metafísico (CIORAN, 1983)[1]

 

Cioran exprime que a história de Adão e Eva é a história da humanidade. Todos são, por essência, Adão e Eva. Caído no pecado, em dores de parto constante, o ser humano não pode mais retornar ao Paraíso. O conhecimento é a sua mácula. Uma vez maculado, não se pode mais estar face a face com o criador:

 

De tanto louvar as vantagens do trabalho, as utopias deveriam tomar a direção oposta do Gênese. Neste ponto particularmente, são a expressão de uma humanidade absorvida pelo trabalho, orgulhosa em comprazer-se com as conseqüências da queda, das quais a mais grave é a obsessão pela produtividade. (…) O homem, uma vez excluído do paraíso, para não sofrer e não pensar mais nele, obteve como compensação a faculdade de querer, de tender para o ato, de perder-se nele com entusiasmo, com brio  (CIORAN, 1994, p. 111).

 

Ser lúcido como foi Cioran não é sinônimo de estudo acadêmico. O filósofo franco-romeno foi acometido de insônia durante sete anos de sua vida, mais precisamente na juventude. Tal fato o revelou que o tempo, ao contrário do que pensam os homens comuns, não passa. Quando se está acordado por toda a noite, tudo o que há às dez da noite há, da mesma forma, às dez da manhã. Portanto, a idéia de “quebra” no tempo, ou seja, o pensamento de que, após uma noite de sono, as coisas que agora estão disponíveis a uma pessoa são “novas” ou estão renovadas, sendo que tudo o mais permaneceu no dia anterior, é passado, é falsa. Quem experimenta as noites de vigília, sabe que essa sensação de “quebra” no tempo advém do sono. Este, por sua vez, impede que o homem tenha a revelação da realidade, pois adormecem os seus órgãos, os seus músculos, fazendo-o toda noite fechar os olhos para a imutabilidade do tempo. Por isso, um ser que vive nas ruas, que vive à margem da sociedade, que adentra a escuridão da noite, tem a lucidez que falta a um erudito.

 

A Ilusão da Utopia

 

A gnosiologia é lúdica. Conhecer é pensar que existe no horizonte um objeto de estudo. Já Cioran diz que o Ser que a tradição filosófica procura alcançar por meio da razão, não está no horizonte, senão no alto. A marcha do ser humano em direção ao Ser tem como causa a idéia de que Este se encontra no mundo exterior:

 

O destino histórico do homem é levar a idéia de Deus até o seu final. Havendo esgotado todas as possibilidades da experiência divina, experimentado Deus sob todas suas formas, chegaremos fatalmente à saciedade e ao asco, após o que respiraremos livremente. Há, entretanto, no combate contra um Deus que encontrou seu último refúgio em certos recônditos de nossa alma, uma doença indefinível, doença nascida de nosso medo de perdê-Lo. Como se alimentar de seus últimos restos, como poder gozar com toda tranqüilidade da liberdade consecutiva à sua liquidação? (CIORAN, entrevista)[2].

 

Seja no solo, nos mares, na atmosfera ou nas galáxias, a ciência busca desvelar a causa primeira da realidade. O que se chama de “horizonte” é o equivalente a “cosmos”, o conceito de que a realidade está para além do corpo humano, de que os entes estão fora do Ser e que, por isso, se pode conhecê-lo.  O pensamento científico, contudo, para Cioran, se esquece que, em todas as demais eras, homens pensaram estar descobrindo coisas novas, estarem dando um passo a mais em direção ao conhecimento da realidade. A História mostra que tais pessoas, posteriormente, tiveram as suas teses refutadas por pessoas de outras épocas e que aquilo que para muitos de seus contemporâneos era genial não tem nenhuma utilidade para a civilização que emerge sobre os seus túmulos:

 

A liberdade, eu dizia, exige o vazio para manifestar-se; o exige e sucumbe a ele. A condição que a determina é a mesma que a anula. Ela carece de bases: quanto mais completa for, mais vacilará, pois tudo a ameaça, até o princípio do qual emana. O homem é tão pouco feito para suportar a liberdade, ou para merecê-la, que mesmo os benefícios que recebe dela esmagam, e ela acaba lhe sendo tão penosa que aos excessos que suscita ela prefere o terror  (CIORAN, 1994, PP. 34-35).

 

Toda idéia corrompe a realidade. Militar, ter uma causa, é manchar aquilo que até então estava puro, intacto, despido de ação.  Cioran sabe que a História conta a ação do homem, as suas utopias e também a suas frustrações. Agir é possuir utopia e possuir utopia é iludir-se. Quem tem um pensamento lúdico, quem sonha, não vê que o mesmo ar que habita as noites vazias das cidades é o mesmo ar que se respira na cama ao acordar. Quando alguém pensa estar apresentando algo novo a outro, quando o emissor do discurso tem a idéia de que suas palavras irão fazer a vida do receptor progredir, iludi-se, pois, o sono o fez fechar os olhos para o vazio da noite, dando-o a impressão de que, ao amanhecer, o ar que se respira é outro que não o de ontem.

 

Para o insone o tempo se exaspera. Ele se reconhece um ser caído, impossibilitado da redenção divina. Diferentemente da noção do sonolento, quem enfrenta as noites de vigília sabe que o tempo é o mesmo ontem, hoje e sempre, não há “quebra”, novidade. As coisas não criadas e depois recriadas como faz pensar o amanhecer de quem dorme. Cioran mostra que o insone é lúcido por saber que, uma vez criatura caída, não existe uma nova criação, nada desaparece, nada se cria, tudo está presente no momento atual assim como esteve no passado e estará no futuro:

 

Não há mais passado, nem futuro; os séculos se desvanecem, a matéria abdica, as trevas se esgotam; a morte parece ridícula, e também a própria vida. E essa comoção, mesmo que só a tivéssemos sentido uma vez, bastaria para nós reconciliar com nossas vergonhas e com nossas misérias, das quais ele é sem dúvida a recompensa  (CIORAN, 1994, PP. 141-142).

 

Mais do que mero simbolismo, mediante o estudo das obras de Cioran, pode-se dizer que, para ele, a Queda e a Insônia são funções orgânicas. Tais funções revelam que o homem é dominado tanto pela fisiologia como pela meteorologia. Um homem é tão comandado pelos seus sentidos quanto uma nação é influenciada pelo clima.

 

Cada civilização pensa ter superado a sua antecessora por meio de artimanhas, técnicas, estratégias que lhe são peculiares. A inteligência, no entanto, segundo o pensamento cioraniano, é una, assim como o tempo, não se divide. Sempre, ao longo da História, soube-se todas as coisas no essencial. As mudanças (tecnológicas, estéticas, arquitetônicas etc.) de uma civilização para outra se dão por causa da eterna repetição da natureza caída do homem.

 

Cada nação que emerge só repete a essência da outra, construindo obras, pensamentos, sistemas que até então não haviam sido materializados, seja em livros, projetos tecnológicos etc. A forma como as coisas são construídas, porém, é a mesma. Tudo o que se faz no mundo advém de uma única razão: a necessidade de se conhecer a verdade final, a realidade em totalidade, o Ser. Desse modo, embora uma civilização possua substâncias materiais e tecnológicas que a anterior não possuiu, tudo o que nela se realiza não é novo, pois remonta a uma mesma necessidade, a uma mesma utopia. A mesma queda, o mesmo fim, que se efetivou nas nações de todas as épocas então se efetivará também na nação presente, inevitavelmente:

 

Apesar de sua precariedade, estamos tão apegados a esse tempo que, para afastar-nos dele, seria preciso mais do que uma alteração de nossos hábitos: teria que ocorrer uma lesão no espírito, uma rachadura no eu, por onde pudéssemos entrever o indestrutível e alcançá-lo, graça concedida apenas a alguns condenados como recompensa ao fato de haver consentido em sua própria ruína (CIORAN, 1994, p. 126).

 

Cioran demonstra em suas obras e entrevistas que o homem não age livremente. A “liberdade” é a idéia de que o homem é individuado, diferente dos demais entes, e que, por isso, a sua ação não pode ser movida, por ser externo ao Ser. Por exemplo, uma pessoa A difere da pessoa B e ninguém em todo o universo é igual a A ou a B, desta forma, a ação de A só pode ser realizada por A e a ação de B por B. Para o autor franco-romeno, em contrapartida, quem assim pensa ainda não experimentou a revelação da realidade. As noites de vigília, segundo ele, revelam que o tempo “continua” o mesmo seja na manhã, tarde e noite, dias, meses e anos, décadas, séculos e milênios! Sendo o tempo imutável, a sensação de ação é falsa. Não havendo ação, o homem não é individuado e, portanto, não é livre:

 

Repetir-se mil vezes por dia: ‘Nada tem valor neste mundo’, encontrar-se eternamente no mesmo ponto e rodopiar totalmente como um pião. (…) Pois não há progresso na idéia de vaidade de tudo, nem desenlace; e por mais longe que nos arrisquemos em tal ruminação, nosso conhecimento não cresce de modo algum: é em seu momento presente tão rico e tão nulo como o era em seu ponto de partida (CIORAN, entrevista)[3]

 

A fisiologia e a meteorologia movem as ações humanas. O conhecimento que separa o sujeito do objeto é tido por Cioran como uma ilusão. Para tanto, a vida desse ser vivente dotado de razão se condiciona pelos órgãos corporais e funções climáticas nas quais está inserido. A “razão” é o pecado do homem. Pensar, dividir o tempo e o espaço, sistematizar, tem como finalidade a busca por Deus. Tal busca, utópica, aparenta ser fértil, assim como o conselho da serpente no Gênesis foi atraente. Quando, porém, se esgota o pensamento, quando o conhecimento chega ao seu limite, vem a loucura, a total falta de sentido, pois a queda faz de quem pensava chegar ao trono do criador um simples bêbado que cai na calçada suja de lama, beijando os pés dos transeuntes mais vis.

 

Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceitá-los, é preciso saber renunciar, violentar-se, agir contra sua própria natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo: ao próximo só a concedemos a duras penas; daí a precariedade do liberalismo, desafio a nossos instintos, êxito breve e miraculoso, estado de exceção oposto a nossos imperativos profundos. (…) Função de um ardor extinto, de um desequilíbrio, não por excesso, mas por falta de energia, a tolerância não pode seduzir os jovens. (…) Dê aos jovens a esperança ou a ocasião de um massacre e eles lhe seguirão cegamente (CIORAN, 1994, p. 14).

 

A história do homem é a história do mal. Só há História com vida e só há vida com ação. Agir, entretanto, é retirar a pureza do objeto até então inexistente. Por isto Cioran, ao mostrar que a humanidade é condicionada pelo corpo e pelo clima, revela que rebelar-se contra tais elementos condicionantes, agindo utopicamente, vendo um mundo exterior, para fora dos seus órgãos e para além da tempestade que o envolve, é ser mal. A ação não pode trazer nem a si nem a outro algo real. Para tanto, quando um parto é realizado o recém-nascido é maculado pelas palavras e gestos das pessoas, que nada mais são do que folhas soltas no ar, sem fundamento, sem solidez, meras impressões. Portanto, como o homem já é maculado desde que nasce pelo pecado da ação, é preciso agir o menos possível para “pecar” o mínimo que se puder:

 

História universal: história do mal. Suprimir os desastres do devir humano é o mesmo que conceber a natureza sem estações. Se você não contribuiu para uma catástrofe, desaparecerá sem deixar vestígio. Interessamos aos outros pela desgraça que semeamos à nossa volta. “Nunca fiz ninguém sofrer”- exclamação para sempre estranha para alguém de carne e osso (CIORAN, 1989, p. 108).

 

Se a História nada mais é do que a marcha utópica do homem em direção a Deus e tal “peregrinação”, pois uma vez caído não se pode alcançar o Paraíso e ver o Criador, é vã e pecaminosa, porque a palavra macula tanto o emissor quanto o receptor, Cioran propõe outro “estado” da História. Este é o “estado negativo” da História, que não tem forma, é negação, nulidade, ausência. Sendo o que a História vê, “capta”, é a “ação” do homem, o estado negativo da História se “efetua” na total subjetividade, no poderio do corpo, do clima, na recusa de agir. O anonimato que advém com isto confirma a lucidez de quem “sente” ao invés de “conhecer”:

 

Jamais houve eclipse de lucidez tal que o homem fosse incapaz de abordar os problemas essenciais, pois a história é apenas uma perpétua crise, uma quebra da ingenuidade. Os estados negativos- que são precisamente os que exasperam a consciência- distribuem-se diversamente, contudo estão presentes em todos os períodos históricos (CIORAN, 1989, p. 144).

 

Cioran constata ainda a existência de um subterrâneo que antecede cada ação. Ele é mais profundo que qualquer ato porque não está presente no passado, não é visto no presente e nem é esperado no futuro. Quanto mais denso, comprimido e doloroso for este subterrâneo, menos lúdica é aquela ação. Desta forma, segundo o filósofo franco-romeno, o ódio e o rancor são mais lúcidos do que a paz e o amor. Isto se dá porque as ações advindas dos sentimentos negativos não buscam construir o Paraíso, senão destruir o que é visto fora de si. Tal destruição é precisa para retirar do corpo, do “lar”, qualquer invasor. Ao contrário das ações positivas, que querem se relacionar, iludindo tanto a si como os outros, as ações negativas são realizadas nas tentativas de isolarem-se após a destruição do mundo exterior. Só restando então o mundo interior. Por isto estas ações são, para Cioran, mais lúcidas do que aquelas.

 

Não vingar-se é submeter-se à idéia de perdão, é afundar-se nela, é tornar-se impuro por causa do ódio que se sufoca dentro de si. O inimigo poupado nos obseda e nos perturba, sobretudo quandodecidimos não detestá-lo. (…) Nada nos torna mais infelizes do que a obrigação de resistir a nosso fundo primitivo, ao apelo de nossas origens (CIORAN, 1994, p. 74).

 

Se a História revela que a essência caída do gênero humano e toda forma de utopias, incluindo a construção de sistemas, é vã, falso também é o utópico “culto” à razão da tradição filosófica. Para tanto, Cioran afirma que esta tradição tem como finalidade desvelar a verdade final, chegar ao “topo” do real. Valorizando as “idéias” em detrimento do corpo, buscam o Paraíso no mundo exterior e, por isso, sempre se frustram. Pode-se constatar isto na Filosofia Moderna, onde a idéia de progresso foi exaltada.

 

A subjetividade como alternativa

 

Seja com materialismo dialético de Karl Marx (1818-1883) ou o idealismo de Friedrich Hegel (1870-1831), os filósofos modernos buscaram substituir o filosofar metafísico da Idade Média por um filosofar que redescobre a História. Esta, por sua vez, é vista por estes pensadores modernos como uma construção ainda inacabada. Há, nesta lógica, algo a se fazer, algo a se mudar. Tanto Marx como Hegel, materialista e idealista, respectivamente, não perceberam, porém, que os seus pensamentos estavam sendo condicionados pelo “clima” propício da modernidade, onde tudo parecia novo e festivo.

 

Não pode haver, para Cioran, sinal de lucidez na Filosofia, pelo menos enquanto tradição. Qualquer pessoa que tem um pensamento coerente com alguma academia deixa de sentir a verdade fisiológica. Quando se escreve um ensaio filosófico aprovado pela academia, o autor não põe no mesmo a verdade que habita no seu interior. Isto porque o pensamento sistemático é objetivado, enquanto que a lucidez se dá no maior grau de subjetividade.

 

Se minha dependência da fisiologia não fosse tão grande, nunca poderia ter tido que utilizar esta alegria aparente. (…) Conta Kierkegaard que, ao regressar a sua casa, depois de haver estado a rir a todo instante no salão, só tinha desejo de se suicidar. Crise existencial que é comprovado em muitas ocasiões (CIORAN, 1983, entrevista).

 

A poesia, em contrapartida, pode ser lúcida, segundo afirma Cioran em entrevistas. Se precisa, contudo, conhecer o grau de subjetividade do autor. Despido dos pecados da academia, um poeta que também não se preocupa com o lucro da sua obra pode não estar distante da real face do mundo. A “vagabundagem”, a falta de compromisso que, vez por outra, fazem parte da conduta de poetas é sinal de lucidez. Não há, pois, lugar, estado, nação ou planeta que possa ser alvo de alguém que tem em si a revelação da realidade por meio da noite. A vigília nas ruas sujas e fétidas fazem do insone um ser que, mais que versos direcionados, recita, com gemidos, os poemas soturnos escritos no seu corpo pelo Ser:

 

A morte é um tema na história da filosofia, mas não como vivência íntima. Em Baudelaire existe a morte, em Sartre não. Os filósofos têmse esquivado da morte fazendo dela uma questão, ao invés de experimentá-la como algo existente. Não a consideram como algo absoluto, mas entre os poetas é diferente. Eles adentram profundamente o fenômeno, rastreando-o. Um poeta sem sentimento de morte não é um grande poeta. Parece exagerado, mas é assim  (CIORAN, 1995, entrevista)[4].

 

O pensar filosófico só pode encontrar alguma relevância para Cioran se os sistemas forem abandonados. A instituição, a academia, objetiva. Por isso, é “má”. Objetivar, agir segundo normas, segundo tradições, é perder-se na ilusão. Da mesma forma, pensar que as tradições podem ser destruídas, ter utopias, são ações vãs. A História não muda. Tanto a passividade quanto o ativismo são erros. No entender do autor franco-romeno tem-se que “não ser” para que o Ser se lhe revele.

 

Quando Cristo assegurou que o ‘reino de Deus’ não era ‘aqui’ e nem ‘lá’, mas dentro de nós, condenava de antemão as construções utópicas para as quais todo o ‘reino’ é necessariamente exterior, sem nenhuma relação com nosso eu profundo ou com nossa salvação individual. Quanto mais as utopias nos tenham marcado, mais esperamos nossa libertação de fora, do curso das coisas ou da marcha das coletividades. Assim se delineou o sentido da história, cujo sucesso superou o do Progresso, sem acrescentar-lhe nada de novo  (CIORAN, 1994, p. 112).

 

Por fim, mediante História e Utopia, Breviário de Decomposição e conhecimento de outras obras e entrevistas, pode-se concluir que Cioran apresenta ao mundo contemporâneo um filosofar “pré-histórico”. Tal “filosofia” não se efetua na consciência, senão no corpo e no espaço. Ao abster-se de qualquer pensamento sistemático, sem, no entanto, desejar fazer parte de qualquer “tendência” literária, Cioran mostra que é na total negação, na plena abstinência da história, que a lucidez se revela. Portanto, torna-se evidente a importância do autor franco-romeno para o leitor contemporâneo, pois as suas obras revelam onde os sistemas e as utopias do mundo pós-moderno conduzirão a humanidade. E não é para o Paraíso!

 

Conclusão

 

As obras de Cioran não são, definitivamente, um apanhado de sistemas, não fazem uma investigação científica da realidade. Isto se dá pelo fato de que, acima de tudo, a subjetividade é preservada pelo autor. O mundo exterior, habitat das utopias, é falso, segundo o seu parecer. Não se pode, portanto, ver o pensamento cioraniano como linear, “coerente”. Ao contrário, suas idéias são fragmentadas, seu estilo, paradoxal.

 

A crítica que Cioran faz a toda forma de utopia, tudo o que for constituído de método, tem as suas raízes na experiência interior. Quem possui tal experiência, não a reconhece como “conhecimento”, pois isto seria afirmar que existe um sujeito que conhece e um objeto a ser conhecido. O filósofo franco-romeno chama de lucidez é o “sentir” a realidade crivada em um tempo que não passa e sob um céu eternamente cinza.

 

A fisiologia e a meteorologia são elementos constitutivos das ações humanas. Para Cioran, este conceito não advém de uma empiria, porém, sobretudo, da negação. Negar, no entanto, é abstinência e, como tal, não requer ação. Pode-se, portanto, se escolher a negação? A reposta é não! Lendo-se com atenção as obras do autor franco-romeno, se verá que o “ato” de negar é justamente “desaparecer” por causa dos órgãos que regem o corpo e natureza. São eles que, na verdade, que impedem que o homem aja, para darem-lhe a lucidez. Desse modo, negar não é “agir”, senão ser envolvido por esta força maior e anônima que escolhe uns lúcidos, para verem a real perdição do mundo caído, e outros, utópicos, iludidos, para pensarem chegar ao paraíso.

 

O mundo é, portanto, no entender de Cioran, um lugar onde se busca a fuga do trágico destino em que todos estão destinados. Todas as formas institucionalizadas de pensamento (Filosofia, Sociologia, Psicologia etc.) são medidas utópicas tomadas pelo ente em busca de sair do tormento que está ao seu redor.  Não se pode, no entanto, fugir da natureza caída do homem, não há fuga para isso. Nenhum mecanismo, nenhum sistema, livra o gênero humano de tamanha tragédia.

 

Desta forma, se conclui que a relevância de Cioran para a Filosofia e o modo de pensar que se desencadeia na atualidade é o fato de as suas obras exprimirem como o modo de pensar progressista, utópico, possui um fim falho. Com esta revelação, os já lúcidos e os que tendem ao subjetivismo são convocados a deixarem que o Nada, que já de antemão começava a se lhes apresentar, os domine por completo!

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Fontes Primárias

CIORAN, Emil. Antologia do Retrato [1952]Trad. br. José Lourenço de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

_________, Emil. Breviário de Decomposição [1949]. Trad. br. José Thomaz Brum, Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

________, Emil. Exercício de Admiração [1986]. Trad. José Thomas Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

_________, Emil. História e Utopia [1960] Trad. br. José Thomaz Brum, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

_________, Emil. Silogismos da Amargura [1952]. Trad. br. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

Fontes Secundárias

ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas [1983]. Trad. br. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro, Zahar, 1984.

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Trad.br. Paulo Alves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

PECORARO, Rossano. Cioran a Filosofia em Chamas. Porto Alegre: Edipucrs 2004.

NIETSZCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra [1885]. Trad. br. Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2002.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e Representação. Trad. br. M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

(*) Daniel Artur Emidio Branco. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará(UECE), cursando especialização em História do Brasil pelo Instituto de Teologia Aplicada(INTA) e cursando Teologia na Faculdade de Teologia do Ceará(FATECE). E-mail: darturemidio-1@yahoo.com.br

0 comentários:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...