Texto de Sérgio Augusto em O Estado de S.Paulo
Misantropos e descrentes do mundo inteiro!, aproximem-se para celebrarmos juntos, com um dia de atraso, o centenário de Emil Cioran, o último agente provocador da filosofia, o mais desconcertante e divertido dos céticos, o mais fulgurante militante do pessimismo, o mais implacável profeta do niilismo, o mais desencantado e provocativo dos moralistas, o mais rigoroso, elegante e lacônico ironista do seu tempo. Se necessitam de provas, aqui lhes ofereço quase vinte:
"Os homens vivem e morrem enganados.
A história das ideias é a história do rancor dos solitários.
O espermatozoide é o bandido em estado puro.
Em todo homem dorme um profeta, e quando ele acorda há um pouco mais de mal no mundo.
Mais que um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte, nem mesmo a poesia, conseguem corrigir.
Por necessidade de recolhimento, livrei-me de Deus, desembaracei-me do último chato.
Não é Deus, mas a Dor, quem desfruta das vantagens da ubiquidade.
Onan, Sade, Masoch, que felizardos! Seus nomes, assim como suas proezas, não envelhecerão jamais.
Prometeu, hoje em dia, seria deputado da oposição.
Há dois mil anos que Jesus se vinga de nós por não haver morrido em um sofá.
Ao contrário dos outros séculos, que praticaram a tortura com negligência, este, mais exigente, introduz nela um desejo de purismo que honra a nossa crueldade.
A história se reduz a uma classificação de polícias; por que, de que trata o historiador, senão da concepção do gendarme que os homens criaram através dos tempos?
Quando a ralé adota um mito, conte com um massacre ou, pior ainda, com uma religião.
Por não haver sabido celebrar o aborto ou legalizar o canibalismo, as sociedades modernas deverão resolver seus problemas através de procedimentos muito mais expeditivos."
Seis meses atrás, ao resenhar duas novas traduções e um ensaio sobre o filósofo romeno na New York Review of Books, Charles Simic perguntou-se: "Quem ainda lê E.M. Cioran hoje em dia?" Quase certamente não o leem com a mesma intensidade de 30 anos atrás, razão primeira da presente escassez de traduções brasileiras nas livrarias, quase todas com a chancela da Rocco e curadoria do prof. José Thomaz Brum (felizmente, a editora começa a relançá-los e ainda publicará um inédito, Do Inconveniente de Ter Nascido), mas não vai longe o tempo em que a sabedoria dark de Cioran deitava sua sombra (ou sua luz) no cinema de autores tão díspares como Woody Allen, Abbas Kiarostami, Rosemberg Cariry, e excitava o espírito de intelectuais tão inquietos como Milan Kundera, Fernando Savater e Ernesto Sabato, que do filósofo se tornaram amigos.
Aos olhos deste ignorante que vos fala, até a publicação daquelas reflexões sobre Cioran de Susan Sontag, em 1968, a cultura da Romênia se resumia a quatro referências apenas: Conde Drácula, Ionesco, Mircea Eliade e Paul Celan. Nem sequer de nome conhecia Camil Petrescu, tido como "o Proust romeno", e só descobriria os filósofos Nae Ionescu (um naziexistencialista romeno) e Constantin Noica através de Cioran, não exatamente de sua obra, mas das leituras paralelas a que fui levado após me tornar um assíduo frequentador daquele que foi o mais distinto continuador, no pós-guerra, da tradição filosófica aforística, lírica e antissistemática de Lichtenberg, Kierkegaard, Nietzsche e Wittgenstein, concorde-se ou não com suas ideias, deleite-se ou não com a "ferocidade tétrica e jubilosa" do seu humorismo (as aspas são de Savater).
A Romênia não nos deu apenas o "teatro do absurdo" (via Ionesco), mas também a "filosofia do absurdo irônico". E Cioran, ressalto, não ficou só nos epigramas.
Como Drácula, ele nasceu na Transilvânia e viveu em Bucareste até os 26 anos, quando, seguindo a rota de seus companheiros de boemia Ionesco e Eliade, foi ser dandy metafísico em Paris, "o único lugar onde ainda se torna agradável desesperar-se", deixando para trás um passado comprometedor (foi simpatizante do nazismo), que desistiu de ocultar e abjurou publicamente, ao contrário de Eliade, que até bater as botas se fingiu de inocente com a maior cara de pau.
O Cioran que interessa e conta é o parisiense, o que passou a escrever em francês e, a partir de 1949, com Breviário de Decomposição, impôs-se como um dos pensadores mais originais, corajosos e intransigentes do século passado. Um Nietzsche com a verve de Oscar Wilde, um mestre da concisão que só tinha vontade de escrever num estado explosivo, "num estupor transformado em frenesi, num clima de ajustes de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes". A única que levou a sério foi seu conflito com o mundo. Jamais se sentiu atraído pelo marxismo: demasiado sistemático, rígido, dogmático, otimista e alheio ao indivíduo e seus desejos e fraquezas.
Só os sortilégios soberanos da música ("o refúgio das almas feridas pela felicidade") aproximaram a sua espiritualidade ateísta de alguma forma de enlevo religioso. Venerava Bach e Mozart, e no final da vida apascentava sua inquietude ouvindo o grupo pop espanhol Presuntos Implicados. Levou uma vida monástica, sustentado pela mulher e pelos amigos, entre os quais Henri Michaux (com quem adorava conversar sobre doenças) e Samuel Beckett (com quem costumava visitar os cemitérios de Paris). Morreu em 1995, com Alzheimer, purificadamente alheio ao mundo que tanto abominava.
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