5 de set. de 2011

O Sentido da Cultura

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Como gostaríamos de aplicar à sociedade e a seus fins um ensinamento que pudesse ser extraído da consideração de todas as espécies do reino animal e vegetal – para elas, somente importa o exemplar individual superior, o mais incomum, o mais poderoso, o mais complexo, o mais fecundo –, que prazer não haveria aí, se os preconceitos enraizados pela educação quanto à finalidade da sociedade não oferecessem uma pertinaz resistência!

3º Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, 6.

 

Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche diz que durante o mais longo período do homem – a pré-história –, o trabalho do homem sobre o homem foi o meio para a produção de um tipo mais corajoso, soberano, capaz de prometer o futuro. Trata-se da cultura como produção do gênio... Nas sociedades primitivas a justiça é “a atividade genérica que adestra as forças reativas do homem”(DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia, pág. 204.). O castigo é o meio utilizado para que o indivíduo soberano seja produzido; somente aquele que domina as suas forças reativas pode se tornar um legislador. Trata-se, portanto, do sentido e do valor que o castigo possui para a atividade genérica.

 

Já nas sociedades históricas – sociedades com Estado, igrejas, etc. –, a justiçanasce da planta venenosa do ressentimento e o castigo produz a planta da má consciência: nelas, o sentido da justiça é para vingar-se de um dano sofrido, e o do castigo é para produzir a culpa naquele que sofre a punição. Ora, se nas sociedades com Estado o castigo visa produzir a culpa, está claro que o que se pretende com isso é aumentar a dívida para com o poder, de maneira que aquele que sofre o castigo, ao sentir-se culpado pelo seu ato, continue submetido às normas vigentes. Por isso Nietzsche ataca os genealogistas da moral reativos, que “descobrem no castigo uma ‘finalidade’ qualquer, por exemplo a vingança, ou a intimidação”(Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 12). Nas sociedades históricas, além do castigo ter a finalidade de produzir a culpa no criminoso, serve para impedir que os outros sigam o mesmo caminho (“se mexer com o poder, vai levar!”). Na atividade pré-histórica, isso não acontece: o castigo serve para que o torturado pague a sua dívida, e não para que a má consciência seja inoculada nele. Por isso diz Nietzsche que:

A ‘má consciência’, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um ‘culpado’. Mas sim um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino. (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 14)

Nesse caso, o castigo, como ritual de crueldade, serve para equivaler a dor ao dano causado para a comunidade. Com isso, consegue-se produzir no torturado uma outra memória, que é a memória de que há sempre um trabalho – o maior de todos – a ser realizado: o da produção ética do futuro. Produzir um tipo forte, para uma sociedade forte, é o que deseja a justiça primitiva.

‘Como fazer do bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?’... Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica. (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 3)

Não há um sentimento de revolta naquele que sofre um ritual de crueldade. E porque essa revolta não acontece, já que o nosso mundo civilizado apenas conhece o castigo no seu uso mais vulgar, ou seja, reprimir para produzir o sentimento da culpa? Porque nos rituais de crueldade não é um Estado ou um sujeito injustiçado que exerce o poder de castigar, mas sim a própria tribo que, nesses rituais, demonstra toda a sua alegria através das suas grandes festas... Há um grande gozo coletivo; fazer sofrer dá prazer à tribo... Ao contrário da má consciência – que é o sentido interno da dor – a dor no mundo primitivo tem um sentido externo: ela é sempre a alegria de alguém que a contempla... Segundo Nietzsche, era assim também no antigo mundo grego, onde a dor era a ocasião para os deuses rirem:

Com que olhos pensam vocês que os deuses homéricos olhavam os destinos dos homens? Que sentido tinham no fundo as guerras de Tróia e semelhantes trágicos horrores? Não há como duvidar: eram festivais para os deuses. (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 7)

Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para manter afastada a ‘má consciência’, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus.” (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 23)

No mundo pré-histórico, a dor serve como um excitante, como uma nova disposição das forças, como uma reação, como uma maneira de produzir um homem forte, como uma alegria para os deuses. A dor é uma oportunidade para prestar homenagens à vida, como uma das condições indispensáveis para que um povo possa superar-se. Portanto, tem o sentido contrário ao da moral judaica-cristã, onde a dor é sempre uma oposição à vida.

O castigo, na atividade genérica, é utilizado para potencializar as forças do torturado. Ao adestrar as suas forças reativas, o torturado paga a sua dívida para com a tribo, porque, afinal de contas, o que o credor mais deseja é que a dívida seja paga, o que não acontece, vale recordar, com o credor das sociedades históricas... No mundo primitivo, os torturados podem pensar assim: “algo aqui saiu errado” e não “eu não devia ter feito isso”(Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 15)... A tribo fica mais forte ao produzir alguém responsável pelas suas forças reativas, adestrando-as para prometer o futuro. Memória da produção da cultura. E para que isso aconteça, a lei da tribo é inscrita no próprio corpo do torturado. Na esteira de Nietzsche, Pierre Clastres diz:

De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento. (CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Da tortura nas sociedades primitivas. Cosac & Naify, pág. 199.)

Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada pela faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas [...] A marca é um obstáculo ao esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma memória [...] Que sabem agora o jovem caçador guayaki, o jovem guerreiro mandan? ‘És um dos nossos e não te esquecerás disso’. (CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. Da tortura nas sociedades primitivas, pág. 201.)

É possível constatarmos que a luta dessa atividade genérica é contra o Estado; mas também podemos afirmar: ela luta contra o ressentimento e a má consciência.

[...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento [...] Precisamente esse animal que necessita esquecer [...] desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória [...] uma memória da vontade. (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.)

Ao produzir essa memória da vontade, a atividade genérica produz alguém que é capaz de domar as suas paixões e fazer delas forças aliadas à criação: desse processo poderá surgir o indivíduo soberano, responsável por suas forças, que poderá responder por si. Produzir o gênio significa produzir aquele que irá superar um estágio da humanidade. Somente o indivíduo soberano, como produto da cultura, pode estabelecer uma nova justiça, já que a justiça que o produziu é suprimida (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 10). Nasce o indivíduo livre para criar novas leis.

Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral [...] o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo [...] uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização [...] O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante. (Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 2).

[...] posto que a humanidade pode tomar consciência da sua finalidade, ela tem de buscar e instaurar as circunstâncias favoráveis que permitiriam o nascimento destes grandes homens redentores [...] pois esta [a cultura] é a filha do conhecimento de si, e da insatisfação de si, de todo indivíduo. Aquele que apela para ela exprime isto dizendo: ‘Vejo acima de mim algo de mais elevado e mais humano do que eu; ajudem-me todos a chegar aí, assim como ajudarei a qualquer um que reconheça a mesma coisa e sofra com ela, para que, enfim, renasça o homem que se sentirá completo e infinito no conhecimento e no amor [...] se agarrará à natureza e se inscreverá nela como juiz e medida do valor das coisas’ (3º Consideração Intempestiva, 6.)

Ao contrário do socialismo da sua época, Nietzsche via na luta por igualdade de direitos um sintoma de decadência. Ele não se preocupou em fazer meras distinções sócio-econômicas entre classes sociais; não perdeu tempo com isso. O que lhe interessava era a distinção do tipo fisiológico – aquele que tem excesso ou diminuição de forças, ou seja, quem pode dominar e quem pode ser dominado.

Em toda sociedade sã, distinguem-se três tipos fisiológicos que entre si se condicionam, mas são de diversa gravitação, dos quais cada um tem a sua própria higiene, o seu próprio domínio de trabalho e a sua própria espécie de sentimento de perfeição e mestria [...] A casta superior – a quem chamo os poucos – como a mais perfeita, tem também os privilégios do menor número: cabe-lhe representar sobre a Terra a felicidade, a beleza e a bondade [...] Os homens mais espirituais, por serem os mais fortes, encontram a sua felicidade onde os outros deparariam com a sua ruína [...] A tarefa difícil surge-lhes como privilégio; brincar com pesos que oprimem os outros é para eles recreação... [...] Dominam, não porque queiram dominar, mas porque são [...] Os segundos: estes são as sentinelas do direito, os guardiães da ordem e da segurança, os nobres guerreiros [...] são os executivos dos espirituais [...] a desigualdade dos direitos é a primeira condição para que em geral haja direitos. Um direito é um privilégio. (O Anticristo, 57.)

Certamente, para o olhar domesticado do homem moderno e democrático, tais palavras são abomináveis. Por isso confundem Nietzsche como se ele fosse um terrível tirano, um sanguinário, um precursor do nazismo. Afastando essas interpretações equivocadas, podemos pensar sobre o que Nietzsche diz sobre a desigualdade dos direitos. Vejamos: ele diz que é a natureza que faz a separação. O que ele quer dizer com isso? É importante recordarmos que uma força nunca é igual a outra. A diferença entre as forças somente é constituída na relação. Essa diferença é a qualidade da força, portanto, sempre haverá uma dominante e outra dominada. Não há uma qualidade “em si” da força, que seria separada de uma relação com outra força.

É virtuoso que uma célula se transforme numa função de outra célula mais forte? Ela tem de fazê-lo. E é mau que a mais forte a assimile? Ela tem de fazê-lo também; é necessário que o faça, pois procura abundante substituição e quer regenerar-se. Alegria e desejo coexistem no mais forte, que quer transformar algo em função sua; alegria e vontade de ser desejado, no mais fraco, que gostaria de tornar-se função. (A Gaia Ciência, 118.)

Dizer que não há igualdade na natureza é o mesmo que dizer que não há um equilíbrio das forças. O desequilíbrio é absolutamente necessário. Um suposto equilíbrio seria a conclusão do universo, o que é um absurdo. O que se coloca, então, é o problema ético da dominação: é para o poder ou para a potência? É a dominação do homem ativo ou do reativo? Conhecemos o mundo sob a dominação do niilismo, que é o domínio do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético. O triunfo do devir reativo é o triunfo da moral judaica-cristã, do sacerdote que fez dos sentimentos de ódio da vida impotente a oportunidade para expandir o seu poder. Ele acolheu todos os excluídos do privilégio da vida nobre – os do terceiro tipo fisiológico – para adoecê-los ainda mais. A multiplicação dos rebanhos, os valores de negação da vida passaram a dominar a vida humana. Mas já vimos do que se trata esse domínio: uma simulação de comando, nada mais além disso. É o rancor presente nos discursos humanistas dos falsos ídolos da nossa época, desses homens pequenos que precisam do poder para ter alguma credibilidade. Querem tudo tirar, porque nada podem dar. O sentido da cultura se perdeu: no lugar da atividade genérica, veio a história, os Estados, as igrejas e todas as formas parasitárias inventadas pelo homem reativo para se proteger do acaso.

 

Numa comunidade sã, não há espaço para o déspota. O poder é constantemente esconjurado. Os homens saudáveis são desejados, e não amaldiçoados. Por isso existem “as sentinelas do direito”, os “nobres guerreiros” (os do segundo tipo fisiológico), que servem como funções dos homens dominadores, a “casta superior” (os do primeiro tipo fisiológico), dos que podem criar valores ainda mais interessantes para uma comunidade, porque potencializam a vida... Os dominadores podem amar a si mesmos, por isso são dadivosos, por isso são verdadeiramente bons, por isso conquistaram o direito de serem responsáveis...

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