5 de set. de 2011

No-nada. Formas brasilieras do niilismo

Autor: Charles Feitosa

Somos europeizados até na forma de ser niilistas ou apresentamos um jeito nacional, todo próprio, de se estar “no-nada”? A seguinte reflexão visa examinar a questão se existem formas especificamente brasileiras de niilismo. Começo citando um importante texto dos anos 80:

 

Não sou brasileiro,
Não sou estrangeiro,
Não sou brasileiro,
Não sou estrangeiro,
Não sou de nenhum lugar,
Sou de lugar nenhum.
Não sou de São Paulo, não sou japonês.
Não sou carioca, não sou português
Não sou de Brasília, não sou do Brasil
Nenhuma pátria me pariu
Eu não tô nem aí.
Eu não tô nem aqui.
(Lugar Nenhum, Titãs, in: “Jesus não tem Dentes no País de Banguelas”, 1987)

Sucesso de quase vinte anos atrás, lembro-me que essa música era altamente instigante, tanto para o corpo como para a mente. De fato, existem duas maneiras de se ouvir o texto da música dos Titãs. A primeira, mais evidente, configura-se como um hino ao nada, pois as fórmulas “eu não tô nem aí, eu não tô nem aqui” parecem denotar uma falta de responsabilidade com qualquer valor, verdade ou lei e um conseqüente afundamento no conformismo do famoso “Impessoal” [Das Man] heideggeriano. A outra maneira, menos evidente, pode entender a expressão “Não sou de nenhum lugar, sou de lugar nenhum” como uma forma alternativa de se pensar a condição brasileira, para além da tradição européia. Mas o que seria estar “no-nada” de forma brasileira?

 

Para referir-me às supostas formas brasileiras de niilismo tomo emprestada a famosa expressão “nonada”, que dá início à obra máxima de Guimarães Rosa1. Não estou sugerindo com isso que Rosa seja um niilista, pelo contrário, estou apenas me apropriando um de seus brasileirismos como uma espécie de emblema para a questão: existe um niilismo à brasileira? O termo "nonada", que abre Grande Sertão e é de extrema importância para a significação do romance, virou, na tradução inglesa, apenas "nothing". Curt Meyer-Clason, o famoso tradutor da edição alemã, considerava intraduzível esse termo, um dos “oito mil neologismos do Rosa” e o transformou em uma frase principal, com quatro palavras de uma sílaba cada uma, para tentar manter o impacto: "Hat nichts auf sich." Ou seja "nonada" é o que não importa, o que, literalmente, nada tem em si. Essa interpretação parece correta, exceto pelo fato de que o termo "nonada" não é um neologismo, mas um arcaísmo revisitado, como quase tudo na obra de Guimarães Rosa2. Eu escolho usar “no-nada” com hífen, enfatizando assim a multiplicidade de significados dessa expressão. “No-nada” pode tanto querer dizer “não é nada”, como “estar aí no nada”, ou ainda, simplesmente: “é nada”. O que é então existir “no-nada” brasileiramente?


Para responder a essa pergunta será preciso primeiro reconquistar o sentido da noção filosóficade “niilismo europeu”.

 

O Niilismo Europeu segundo Nietzsche

O que é estar aí “no-nada” europeiamente? A expressão “Niilismo Europeu” vem de Nietzsche, mais especificamente das anotações de 1886-1887, reunidas na compilação intitulada Vontade de Poder3. A primeira observação importante a se fazer sobre o título vem de Heidegger, no seu comentário sobre a Vontade de Poder como Arte (1936), segundo o qual o nome “europeu” refere-se a todo o mundo “ocidental” e não apenas ao assim chamado “velho mundo”. Se Heidegger tiver razão, então já tenho aí uma importante objeção a minha hipótese. Caso “europeu” seja sinônimo de “ocidental”, então o niilismo do qual fala Nietzsche também nos abarca. Ou não? Será um absurdo sugerir que a cultura brasileira extrapola de muitas maneiras a categoria do “ocidental”? Parto então dessa desconfiança, a de que o Brasil não ocupa um lugar homogêneo no ocidente, mas que é uma cultura na fronteira, de fronteira, que talvez esteja por toda a parte, ou em lugar nenhum, como o sertão de Guimarães Rosa. Isso me faz insistir na questão: existem formas brasileiras de niilismo?

 

No prefácio de Vontade de Poder, Nietzsche diz que o que vai ser contado é a história dos próximos dois séculos. As imagens giram em torno de um futuro inexorável, Nietzsche fala de necessidade, destino, catástrofe, corrente, como se o niilismo fosse uma onda tão gigantesca quanto inevitável. Em uma já famosa formulação ele menciona o niilismo como o “unheimlichste aller Gäste”4, ou seja, “o mais estranho de todos os hóspedes”. O niilismo tem o sentido de alguém que não pertence à casa e que talvez seja até considerado uma visita indesejada, mas que, já consentido, é um invasor, que não apenas é estranho como nos faz ficar estranhos de nós mesmos também.

 

Para falar do niilismo Nietzsche diz que tem a perspectiva privilegiada de filósofo e de “Einsiedler por instinto”. “Ensiedler” é uma palavra dúbia que pode significar tanto “eremita”, alguém que se retirou do seu lugar habitual; como também “imigrante”, alguém que veio de outro lugar. Em ambos os casos está enfatizada a ambigüidade de estar simultaneamente de dentro e de fora. Segundo Nietzsche, o filósofo tem a vantagem de ser alguém acostumado à experimentação, alguém que já se perdeu nos labirintos do futuro e que vê o que vai acontecer como alguém que olha para trás; já o eremita-imigrante tem a vantagem de ver a partir de uma perspectiva exterior, como alguém que passou através e para além do niilismo. Por isso Nietzsche se auto-denomina “o primeiro niilista completo (perfeito) da Europa” (ibid.).

 

E o que esse pensador imigrante diz sobre o niilismo? O niilismo é definido de muitas maneiras, mas sua principal característica é a recusa radical de valores e de verdades. A existência é vista como uma pena, os valores superiores se deterioram, falta um sentido para as coisas, faltam respostas para as perguntas: “alles hat keinen Sinn!” [nada tem significado ou só o nada tem significado!]. As categorias de meta (Zweck), unidade (Einheit), todo (Ganze) e ser (Sein), na quais colocávamos um valor, nos são tomadas, o mundo parece esmaecido, sem densidade. A causa principal do niilismo pode ser atribuída a uma longa história frustrada de vontade de verdade, de fé na racionalidade, de expectativa, não realizada, de um mundo controlável e previsível. Os principais sintomas são as sensações de desorientação, de insegurança, de angústia, de tédio. Os efeitos colaterais são o desprezo e ressentimento por tudo que estiver associado ao mutável e ao sensível, tal como o corpo, suas paixões e afetos.

 

Existe uma certa ambigüidade no texto de Nietzsche pois, embora o niilismo seja inevitável, ele pode e deve ser combatido. É tarefa do pensador eremita diagnosticar a crise e preparar as mudanças que permitam sua superação. O niilismo pode ser considerado uma conseqüência lógica de mais de 2.000 anos de dominação moral cristã. O Brasil, evidentemente, também faz parte dessa história, mas de que maneira? Não seria, por exemplo, a tendência predominante da cultura nacional de supervalorizar o corpo, a aparência e os prazeres imediatos em detrimento dos valores éticos ou das atividades intelectuais, um sinal de que o niilismo ganha uma outra roupagem nos trópicos?

 

Formas do Niilismo

Não existe apenas uma forma de niilismo, o próprio Nietzsche fala de niilismo radical, completo e artístico (no caso de Wagner). A principal nuance refere-se ao niilismo ativo (“enquanto sinal de um poder elevado”) e ao niilismo passivo (“recuo e decadência das forças”). O niilismo ativo talvez pudesse ser representado na figura de um skinhead, destruindo os telefones públicos de seu bairro, enquanto que o niilismo passivo talvez pudesse ser representado pela atitude de indiferença dos vizinhos, observando a cena, como se não fosse com eles. Nietzsche refere-se a si mesmo como o “niilista completo”, alguém capaz de levar às últimas consequências a crescente desvalorização dos valores absolutos de “bem”, de “verdade” e de “beleza” e preparar o terreno para a criação de novos e diferentes valores. O niilismo completo se realiza através de uma filosofia a marteladas, dirigida contra os ídolos da cultura, mas também pela filosofia com o diapasão (Stimmgabel)5, capaz de captar sutilezas nos discursos inaudíveis ao ouvido humano desavisado.

 

Existe ainda uma forma de “niilismo incompleto”, que Nietzsche também chama de reativo: “O niilismo incompleto e suas formas: vivemos no meio dele. A tentativa de escapar do niilismo, sem efetuar uma transvaloração de todos os valores: produzem o contrário, tornam o problema ainda mais difícil” (Vontade de Poder, §28). Isso quer dizer que tanto a desvalorização generalizada do corpo e dos valores terrenos, quanto sua forma contrária, a supervalorização reativa do prazer imediato sobre qualquer forma de esforço, são ambos indicadores do niilismo europeu.

 

Trata-se aqui de um forte argumento contra a hipótese de que haveria uma forma tipicamente brasileira de niilismo. O desprezo dos racionalistas pelo corpo assim como a
desconfiança dos hedonistas pelo pensamento são faces da mesma moeda. Outra objeção
importante é que a preocupação excessiva com a busca de felicidade, que se traduz na sociedade brasileira atual pelo grande interesse por livros de auto-ajuda ou por medicamentos estimulantes da produção de serotonina, seria na verdade uma  característica comum às sociedades capitalistas contemporâneas. Talvez o niilismo tenha se globalizado de tal forma que as diferenças regionais acabaram sendo absorvidas e anuladas. Esse mesmo argumento valeria para uma outra observação perspicaz de Nietzsche, em um aforisma de 1886, acerca do caráter niilista da época que estava por vir: “Perigo de nossa cultura – pertencemos a um tempo em que a cultura corre o perigo de ser destruída pelos meios pelos quais essa cultura se produz” (Humano, Demasiadamente Humano, I, §520). Toda a questão a questão a respeito do poder desmedido da mídia de massa na nossa sociedade está sintetizada aí. Mas, de novo, isso não parece ser uma exclusividade brasileira: praticamente todo o cenário mundial caracteriza-se por concentrar o foco muito mais nos meios (tecnologias de transmissão e preservação das mensagens), através dos quais a cultura se faz, do que nas próprias produções dessas culturas.

 

Talvez minha hipótese, a de que existam formas brasileiras de niilismo, não possa ser sustentada a partir de Nietzsche. Por outro lado, exceto por algumas observações esparsas em que a força e energia do “homem tropical” era contraposta à decadência e tédio do “homem europeu”6, Nietzsche dedicou pouca atenção à realidade sul-americana. Talvez seja preciso aqui então abandonar provisoriamente seus diagnósticos e recorrer a algum outro pensador imigrante, alguém que tenha morado tanto na Europa como no Brasil e que seja capaz de olhar tanto de dentro como de fora para essas culturas. Alguém como Vilém Flusser.

 

O Niilismo Brasileiro segundo Flusser

Vilem Flusser (1920-1991) foi um “Wahlbrasilianer”, brasileiro por opção, viveu no nosso país cerca de 30 anos (entre 1940 e 1972). Surpreendentemente poucos no Brasil conhecem esse filósofo de origem tcheca, que precisou emigrar de sua terra natal por conta da ocupação nazista e depois precisou emigrar do seu novo lar por conta da ditadura militar nos anos setenta. Os textos autobiográficos de Flusser dão a entender que esse segundo exílio forçado parece ter sido ainda mais doloroso do que o primeiro, como se a pátria escolhida fosse ainda mais importante do que a pátria do acaso, onde se é jogado (no sentido heideggeriano de Geworfenheit) por ocasião do nascimento. Ao voltar à Europa, em 1972, Flusser começou uma longa e profunda reflexão sobre a dimensão filosófica da migração em geral, e em particular, sobre sua experiência de imigrante europeu no Brasil7. É nessa época que ele escreve o livro Fenomenologia do Brasileiro, que só foi publicado na Alemanha em 1994 e no Brasil em 1998.

 

O livro Fenomenologia do brasileiro tem como subtítulo o lema: Em busca do novo homem. Isso soa grandioso e suspeitosamente parecido com o tema de um outro livro famoso, publicado décadas antes, mas também escrito por um imigrante europeu refugiado do nazismo. Não há como não se lembrar portanto do livro Brasil, País do Futuro (1941) de autoria do escritor e filósofo austríaco Stephan Zweig (1888-1942). Ambos os autores têm em comum uma forte influência nietzschiana na abordagem da cultura brasileira, a saber, sob a perspectiva de um projeto para o futuro. Mas existem muitas diferenças também. Enquanto Zweig apresenta uma visão deslumbrada do país, marcada por uma profunda nostalgia de um novo paraíso8, Flusser é mais moderado. Seu livro trabalha com hipóteses e apostas, sem falsas esperanças ou certezas, de que a cultura brasileira possa talvez se desenvolver por outros caminhos diferentes daqueles já esgotados pelas sociedades européias.

 

Assim como Nietzsche na sua Vontade de Poder, também Flusser se apresenta na introdução. Seu ponto de vista é o de um intelectual burguês brasileiro, inteligente e com boa condição social, imigrado da Europa, tentando pensar a cultura brasileira, seus problemas e virtudes. Ele vê o Brasil como uma das muitas culturas no mundo que escapa às regras e medidas da “história”, definida como “a soma dos atos decisivos (res gestae), que se tem desenvolvido até agora (isto é: nos últimos 8.000 anos, aproximadamente) em larga faixa que cinge o globo entre os graus 25 e 60 do Hemisfério Norte”9. Esse caráter extra-histórico do Brasil não será interpretado como uma falta ou defeito a ser corrigido, mas como uma oportunidade de contrapor e de rever os próprios rumos dos projetos da via européia.

 

Flusser considera sua perspectiva privilegiada para uma tarefa tão gigantesca: “acessível
apenas para quem sente o próximo fim da história em todos os seus nervos, e simultaneamente vivencia os problemas da não-história no próprio corpo” (ibid, p.36). Duvidando tanto da história como da não-história, isto é, sem colocar uma como a causa ou a solução dos problemas da outra, Flusser tenta construir uma imagem filosófica do homem brasileiro. Ele não assume o lugar de representante da cultura ocidental, em suposta missão civilizatória nos trópicos; ao contrário, essa imagem do Brasil será endereçada principalmente ao homem ocidental, para que este possa reavaliar a sua própria imagem.

 

É importante observar que Flusser não usa em nenhum momento o termo “niilismo“, mas a
questão está lá, expressa em termos de alienação, desenraizamento e decadência. Flusser descreve o país em termos gerais como um composto de diversas classes, desde uma massa urbana relativamente acomodada, um homem rural vivendo à beira da pré-história, passando por uma elite econômica enfurnada em palacetes, e ainda uma elite acadêmica, caracterizada por diversos graus (maiores ou menores) de admiração e de adesão à cultura européia.

 

Vários aspectos problemáticos da cultura brasileiras são apontados por Flusser. Em primeiro lugar o que há de mais evidente: o fosso entre a cultura de massa e a cultura de elite, a primeira sendo manipulada pela segunda; a resignação das massas anestesiadas pelo desejo de consumo e entretenimento e a conseqüente manuntenção da separação entre as classes; a miséria do proletário e do caboclo em contraste com o luxo kitsch da burguesia. Last but not least, a elite acadêmica, principalmente aquela composta por filósofos, predominantemente ocupada em produzir comentários escolásticos de textos europeus ou norte-americanos, enchendo gavetas com papéis eruditamente impressos (Cf. ibid, pp. 147-148).

 

Outro aspecto menos óbvio é a relação alienada do homem brasileiro com a natureza. Segundo Flusser o brasileiro não ama sua paisagem, não tem ligação com a terra. Os elogios acerca das belezas naturais do país, “onde canta o sabiá e onde os prados têm mais flores”, não passariam de discursos românticos, quer dizer, iludidos e ilusionistas. Os brasileiros medianos, na verdade, parecem não gostar de passear na natureza, não conhecem os nomes das plantas e dos animais que os cercam, só gostam dos acidentes geográficos destacados, tais como o Corcovado, o Pão de açúcar, as Cachoeiras de Iguaçu. Flusser vê também sinais do alheamento do brasileiro em relação à natureza na arquitetura desconectada das vantagens e desvantagens climáticas de cada região (por exemplo, os amontoados de prédios altos nas regiões litorâneas). Em vez de valorizar a natureza, o urbanismo brasileiro quase sempre a esconde, a invade ou a derruba, seja através de túneis, estradas ou aterros. Além disso, embora a natureza seja freqüentemente mencionada como mãe gentil, ela é vivenciada muito mais uma madastra má e ameaçadora: “O brasileiro não está ligado à natureza. Ou vive nela e é difícil distingui-lo dela, ou avança contra ela a ferro e fogo” (ibid, p.61). No Brasil a terra não é fonte de vida, mas obstáculo a ser suplantado, é um inimigo que exige a mobilização de todas as forças, seja para escapar da seca ou das inundações, do sol causticante ou das geadas implacáveis.

 

Mas o aspecto mais intigante diz respeito à falta de responsabilidade crônica constatada por Flusser em diversos setores da sociedade brasileira: “ela se manifesta por exemplo na forma do vandalismo que são tratados edifícios e lugares públicos (para não falar de privados), e na forma de uma inacreditável consciência tranqüila perante injustiças que gritam para os céus” (ibid, p.72). A falta de responsabilidade pelo outro constitui uma das características mais preocupantes da cultura brasileira. A esse respeito vale lembrar que, em uma das crônicas do livro Ficções Filosóficas, publicado postumamente em 1998, Flusser comenta uma música que fazia muito sucesso em 1964. "Deixa Isso Prá Lá", interpretada por Jair Rodrigues, era uma canção inusitada para a época, pois tinha uma cadência mais falada do que cantada: “Deixa isso prá lá / Vem pra cá / O que que tem? / Eu não tô fazendo nada / Você também...”. Para pesquisadores da música popular brasileira, essa foi a primeira gravação de Rap no país.

 

Flusser interpreta o refrão “Deixa isto pra lá” como uma forma de cinismo. A filosofia existencialista costuma distinguir entre a “atitude autêntica”, daquele que assume a responsabilidade da sua escolha, e a “atitude inautêntica”, daquele que delega inconscientemente a responsabilidade das suas opções para os outros. Segundo Flusser os existencialistas franceses parecem não ter previsto, entretanto, o “jeitinho brasileiro” expresso nessa música: a atitude de escolher deliberadamente o conformismo, a alienação, a conversa fiada10. “Deixa isto para lá” seria uma espécie de fazer de conta que os valores ainda valem e transgredir esses valores vazios fingindo que não está se fazendo nada. Se Flusser tiver razão, seria então a escolha intencional e consciente da não-escolha, da inautenticidade e do cinismo a principal contribuição brasileira para a história do niilismo no ocidente?

 

Formas Brasileiras de escapar do Niilismo segundo Flusser

Flusser destaca também em seu livro diversos aspectos na cultura brasileira, que podem ser lidos como formas de resistência ao niilismo europeu. Ele menciona a solidariedade típica dos brasileiros, uma solidariedade que transcende nacionalidades, classes, raças e credos: “o brasileiro é democrático existencialmente” (Fen. Bras., p.71), afirma ele com um certo orgulho. A despeito das diferenças e injustiças, predomina em diversos setores do país uma relação “cordial” e “amável” com o próximo. Flusser arrisca até uma genealogia dessa solidariedade: os brasileiros gastam tanta energia contra a natureza que falta energia pra ter ódio um dos outros; surge então uma solidariedade espontânea, um aspecto de grande vitalidade, pois todo homem é aliado na luta contra a natureza: “o brasileiro verdadeiro é um homem incapaz de odiar e invejar o outro, porque toda a sua capacidade para o ódio, toda sua energia para a vitória, e toda direção de sua ação é mobilizada contra a natureza” (ibid, p.70). Embora essa genealogia seja questionável, a solidariedade a qual Flusser se refere é uma característica muito mais facilmente constatável pelos imigrantes, mais habituados a ver para além do habitual, do que pelos próprios nativos. Para Flusser essa solidariedade espontânea é um dos elementos importantes para a superação do estar aí “no-nada” ocidental.

 

A solidariedade espontânea do brasileiro está relacionada diretamente com a capacidade cultural de “hibridização” das diferenças. Flusser não usa o termo “híbrido”, que ficou famoso através da obra de Nestor Canclini11, mas faz uma interessante distinção entre mistura e síntese: “Na mistura os ingredientes perdem parte da sua estrutura para unir-se no denominador mais baixo. Na síntese, os ingredientes são elevados a novo nível, no qual desvendam aspectos antes encobertos” (p. 52). As sínteses, ao contrário das meras misturas assimilativas, são criadoras de novas formas, formas compostas de heteróclitos, formas férteis, onde as diferenças permanecem visíveis, ainda que modificadas. Essas sínteses são observáveis não apenas nas incontáveis combinações raciais (a tal ponto que tornam inviável o próprio conceito de “raça”), como também nas inúmeras constelações culturais presentes no país, que incorpora desde a culinária japonesa até o misticismo espanhol, passando pelo positivismo francês, o idealismo alemão, o pragmatismo norte-americano, a ironia judia, a música napolitana, etc. Essas sínteses são visíveis ainda na pesquisa científica (métodos europeus com tecnologias norte-americanas), na pintura (concretismo geométrico com abstracionismo), na literatura (regionalismos com filosofias existencialistas), na música (ritmos africanos com harmonias schoenbergianas) (cf. ibid, p.88). A capacidade de sintetizar opostos por métodos espontâneos seria outra das grandes qualidades da cultura brasileira e representaria uma alternativa para a crise da história ocidental.

 

Finalmente, a principal forma de escapar do niilismo poderia ser localizada na habilidade do brasileiro de brincar criativamente. Conforme Flusser, os europeus só saberiam jogar de duas maneiras, ou para ganhar (arriscando muito) ou para não perder (arriscando pouco). Os brasileiros, ao contrário, desenvolvem uma terceira estratégia: jogar para mudar as regras do jogo, um tipo de atitude inusitada, presente mais no carnaval do que no futebol, que pode servir de metáfora para um novo tipo de pensamento, ainda por vir. Flusser aposta na possibilidade de surgimento de um novo homo ludens: “Um homem para o qual a arte é melhor do que a verdade, para falarmos nietzschianamente” (ibid, p.101). O homo ludens brasileiro é capaz de escapar à tradicional alternativa entre trabalhar ou jogar, pois pode trabalhar brincando e brincar trabalhando. “Brincar” significa tanto “jogar alegremente e sem regra” como “agir com facilidade”. Entre vários exemplos dessa capacidade espontânea para a brincadeira, Flusser menciona que o projeto brasileiro de felicidade não é progredir ilimitadamente, tal como o europeu, mas chegar a um ponto em que se pode abandonar o progresso e “gozar a vida”. O projeto de deixar de trabalhar, que poderia ser interpretado como sinal de indolência para um observador do ponto de vista da ética protestante capitalista, ganha sob a ótica imigrante de Flusser outros significados, a saber, uma alternativa de extrema importância para a humanidade toda, ao se colocar contra a avareza burguesa ocidental, que conhece apenas o progresso contínuo, a todo custo, como meta: “O verdadeiro engajamento brasileiro portanto não é no progresso, mas em meta não-progressista alcançável apenas se o método do progresso foi aplicado até certo ponto” (ibid, p.125).

 

Conclusão: Entre o “Não tô nem aí” e o “Sou de Lugar Nenhum”

Flusser tem consciência de que suas observações sobre a cultura brasileira têm um caráter meramente indicativo. Em diversas passagens do livro ele diz que é uma tarefa para uma futura filosofia brasileira investigar mais profundamente a habilidade nacional para a solidariedade, para o hibridismo ou para a brincadeira. É interessante notar que esses aspectos positivos da cultura brasileira são descritos sempre como espontâneos, instintivos, intuitivos. Embora Flusser tenha endereçado seu livro ao homem europeu, para que este possa se confrontar a si mesmo através da diferença, existe uma mensagem subliminar direcionada aos brasileiros, que devem decidir se vão assumir esses aspectos intuitivos de sua cultura de forma coletiva, como uma estratégia política de resistência ao niilismo. Para Flusser, o país precisa escolher entre se tornar mais um dos integrantes da história ocidental (que beira perigosamente no abismo) ou dar origem a uma maneira diferente de estar aí no mundo. Trata-se de um país cristão, com forte herança européia, avesso à responsabilidade, mas também com certa distância e independência das ideologias. Uma posição privilegiada, mesmo que não reine certeza sobre o seu futuro.

 

Uma das tarefas da filosofia brasileira atual é reavaliar a situação e questionar até que ponto o país se está encaminhando para uma via toda própria ou apenas lutando para se integrar a um processo que já dá sinais de decadência. Faz parte dessa tarefa reavaliar os conceitos e diagnósticos filosóficos gerados em um contexto extra-brasileiro e reinventá-los, sob novas formas e matizes, a partir de nossas experiências. Nem tudo está perdido, mas nem tudo está a salvo. Flusser sabe do caráter utópico de seu livro, mas reinvidica uma reformulação do conceito de utopia a partir da cultura brasileira: “O que acaba de ser dito é utopia, mas não no sentido histórico do termo. O ‘lugar nenhum’ (utopia) não é, como no caso do pensamento histórico, a plenitude dos tempo, dentro do qual a história desemboca, mas é um lugar fora do tempo irrigado pelo tempo, um lugar exemplificado pelo carnaval e outros fenômenos brasileiros” (Fen. Bras., p.126) O Brasil se torna uma “utopia” no pensamento dos migrantes, mas “utopia” não no sentido de “um lugar impossível”, mas sim de um “lugar de e do fora”; de fora da Europa, do ocidente e do niilismo. Um lugar não determinável, mas grávido de possibilidades. Nesse ponto vale a penar ouvir de novo a música dos Titãs e pensar, junto com Nietzsche e Flusser, que cantar “sou de lugar nenhum“ pode ser também uma forma criativa de dizer “não ao nada”.

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Notas:

1 “- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. (...) O sertão está em toda parte” (Grande Sertão: Veredas, 1953). Essa enigmática expressão, tema de numerosos debates, encerra também a saga do vaqueiro Riobaldo: “Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. (...) Amável senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano , circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se fôr ... Existe é homem humano. Travessia” (ibid). Tudo se passa como se o romance, na verdade uma investigação sobre a origem do mal, se desenrolasse como uma linha circular, de um “nonada” a outro “nonada”.

2 A expressão já aparece em português num poema de Gregório de Matos do século XVI: “vendo o pouco que duraste,/ da vida foste um ‘nonada’,/ nem foste rosa, nem nada,/ Se tão depressa acabaste (Nasce a Rosa e Nasce a Flor). Em espanhol antigo “nonada” quer dizer simplesmente o mesmo que nada ou nenhuma coisa, como no famoso verso de Tereza d’Avila: "Tenía que decir muy poco o nonada".

3 Sabemos hoje que Vontade de Poder é uma obra com muitos problemas, não apenas por que diversos fragmentos do mesmo período não foram compilados, mas também porque dentre os selecionados há vários que foram adulterados pela edição tendenciosa, pró-nacionalista, de Elizabeth, a irmã de Nietzsche.

4 In: F. Nietzsche: „Prefácio“ a Der Wille zur Macht [Vontade de Poder] (1906), ed. P. Gast, Frankfurt a. M.: 1992.

5 Sobre a filosofia com martelo e diapasão confira o prefácio de 1888 à obra Crepúsculos dos Ídolos de Nietzsche.

6 Há na obra de Nietzsche uma certa idealização do “sul”, um lugar marcado por um ar diferente. Essa idealização se manifesta mais evidentemente na predileção nietzchiana pela música de Bizet, que seria capaz de captar a alegria de um outro clima, mais tropical e menos europeu, uma sensibilidade mais alegre e apaixonada.

7 Ver Charles Feitosa: Pensar, Migrar. In: D. Lins e P.P. Pelbart (eds.): “Nietzsche e Deleuze: Bárbaros e Civilizados”. São Paulo: 2004, pp. 39-45.

8 O livro de Zweig, que completa 65 anos de publicação em 2006, deveria servir como uma espécie de propaganda para a ditadura Vargas. “Fui obrigado a escrever o livro”, teria dito ele a um conterrâneo vienense. Parece que Zweig se sentia no Brasil mais como um “fugitivo”, alguém perdera a sua casa, do que como um “imigrante”, no sentido
que Flusser dá a palavra, alguém que tem a oportunidade de olhar para o mundo para além dos hábitos da sua terra natal.

9 Vilém Flusser: Fenomenologia do Brasileiro, Rio de Janeiro: 1998, p.34

10 Cf. Vilém Flusser: Ficções Filosóficas, São Paulo: 1998, p.81.

11 Cf. Nestor Canclini: Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade, São Paulo: 1997. O termo “híbrido” significa “mistura de espécies diferentes” e está relacionado com a expressão grega hÿbris (“desmedida”, “excesso”). O híbrido não é o resultado da fusão de dois diferentes em um terceiro e único ser, mas um ser caracterizado pela interferência das diferenças, nas suas tensões e ambigüidades.

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