5 de set. de 2011

O SER, O TEMPO E O NADA – CARACTERÍSTICAS DO NIILISMO EM AS LESMAS

Por Fabiana Coelho de Morais e Maria Raimunda Gomes

Heleno Godoy no Festival

Os anos sessenta foram palco de diversas mudanças na vida e no pensamento do povo brasileiro. Marcados, sobretudo, por uma forte repressão política, social e cultural, devido à Ditadura Militar que teve início com o Golpe de 64. As narrativas ficcionais produzidas nesta época nos apresentam personagens “problemáticos, com suas vidas amorosas em conflito; presos a relações neuróticas”, (Gomes, 2005, p. 14). Foi neste contexto que o escritor goiano Heleno Godoy concebeu o romance As lesmas, o qual teve sua primeira publicação em 1969 e foi reeditado em 2002. Este romance projetou a literatura goiana no cenário das narrativas modernas e recebeu elogios de vários críticos, sendo considerado um livro de vanguarda, não somente por sua linguagem, trabalhada de maneira expressiva e inovadora mas, sobretudo, pela forma como trabalha a temporalidade; segundo o crítico Carlos Fernando Magalhães (2002, p. 279), que fez o posfácio do romance de Godoy, “a maior qualidade de As lesmas mostra-se na continuidade-descontinuidade (relação espaço-tempo) com que é narrado”. No entanto, objetivamos neste trabalho ressaltar que é também de grande relevância a complexidade no relacionamento dos personagens com o mundo e consigo mesmos, a própria questão da existência, o “ser” e o “não ser”, que aponta para a presença de traços da filosofia existencialista e niilista, nos impulsionando a compará-lo ao romance A náusea, de Jean-Paul Sartre.

 

As lesmas narra a história de Lúcio, um jovem que nos malogrados tempos do golpe militar viveu os mais conturbados dias de sua vida; foram os acontecimentos desencadeados por este período negro, sem perspectivas, que associados à descoberta de um amor que ele julgava impossível, o amor homossexual por Mário, e a educação repressora que recebia tanto na escola de padres em que estudava, quanto na família, que o levaram ao suicídio. O romance, que se inicia in medias res, nos apresenta Lúcio em seus últimos minutos de vida, na capela do colégio, perdido num grande emaranhado de pensamentos e sem conseguir apreender o significado das coisas que vê, sente e vivencia, “as cenas criadas pelos milhares de pedaços de vidros coloridos já perderam o significado, se é que o tiveram, ou se têm, para eles algum significado, que já não consegue apreender, entender o que dizem ou o que querem dizer, o que representam” (Godoy, 2002, p. 16), ou seja, é o fim da consciência de si mesmo e do mundo que o cerca, momento este em que o “eu” deixa de existir; segundo Franklin Leopoldo e Silva, em Ética e Literatura em Sartre (2004, p. 45), “É angustiante pensar que o que somos se constitui fora de nós, na contingência das coisas e da história”. Assim como Roquentin, personagem problemático de A náusea, Lúcio, no decorrer do romance, descobre que sua existência estava ligada à presença das coisas, dos objetos que o cercavam e do próprio Mário, objeto de sua paixão. Com a partida de Mário, em razão de Lúcio recusar-se a ter com ele um relacionamento amoroso, este se sente perdido: “Estou cansado e sem rumo. Não sei o que fazer” (Godoy, 2002, p. 77), e também não consegue mais assimilar a significação do mundo e das coisas; aos poucos descobre que sua vida não faz mais sentido algum: “Não tenho sentidos, não faço sentido” (Godoy, 2002, p. 94), neste ponto Lúcio sente e reconhece o vazio do tempo e da existência, é a descoberta do nada, “O nada como fenda que se alastra e toma conta de tudo e de todos” (Godoy, 2002, p. 88). Também Roquentin (personagem criado por Sartre para ilustrar esta descoberta do “nada” das coisas) passa por este momento, ao “descobrir que a presença das coisas é o único modo de existência destas” (Silva, 2004, p. 50), desta forma, ao tentar transpor as aparências das coisas e enxergar um outro modo de existência destas, ou seja, uma forma que fuja à aparência do presente, descobre que a única maneira de fazer isto seria imaginar o “nada”, pois as coisas são inteiramente aquilo que parecem ser e por trás delas não há nada. Antoine Roquentim, o protagonista de A náusea, é um historiador que se refugia na província de Bouville para escrever a biografia do marquês de Rollebon, porém é permanentemente tomado pela sensação de náusea que provoca nele uma ruptura consciente com os outros e com o mundo. Ao desistir de escrever o livro sobre a vida do marquês de Rollebon, objeto de suas pesquisas e única fonte de inspiração para sua vivência naquele momento, “Não esquecer que o Sr. De Rollebon representa hoje em dia a única justificativa de minha existência” (Sartre,1983, p. 110), Roquentin sentiu que este havia morrido e com ele todo o sentido de sua existência. Essa associação tão singular entre o marquês e Roquentin é de tal forma complexa que “a consciência de Roquentin visa o marquês não como um outro, ou como uma criação, mas como um outro si mesmo” (Silva, 2004, p. 52). A existência do marquês mostra ser para o personagem Roquentim, mais real do que as pessoas que o cercavam, embora sua presença não fosse imposta, pois fora Roquentin que o invocara, ele desempenhava um papel fundamental em sua vida, “O senhor de Rollebon era o meu sócio, tinha precisão de mim para ser e eu tinha precisão dele para não sentir o meu ser” (Sartre, 1983, p.148). Esta mesma associação evidencia-se no relacionamento entre Lúcio e Mário, a partida de Mário representou para Lúcio, a morte, o fim da existência de tudo aquilo que só fazia sentido para ele enquanto o outro estava presente, “O que vou fazer ainda com o que porventura encontrar?” (Godoy, 2002, p. 59). É também interessante perceber que outras curiosas semelhanças se mostram nas narrativas de Sartre e de Godoy, como o fato de os personagens terem como única forma para expressar suas angústias e frustrações, um diário, embora as marcações cronológicas destes diários sejam diferentes, pois Roquentin
registra apenas os dias da semana ou as horas, já o diário de Lúcio está organizado com indicações de datas e meses; notamos o quanto seus conflitos existenciais os isolavam do mundo e da convivência com outros seres, assim tanto em As lesmas quanto em A náusea, temos personagens problemáticos, cujas relações com a sociedade são puramente metafísicas, uma vez que mostram-se imersos num reino sem retorno, sem conseguir apreender o sentido do mundo e das coisas. Para Lúcio a maneira encontrada para lidar com essa consciência adquirida do “nada” foi o suicídio, uma forma de integrar-se, de tornar-se também parte deste “nada”. Já Roquentin, embora demonstre em algum momento este mesmo desejo: “Pensava vagamente em me suprimir, para aniquilar ao menos uma dessas existências supérfluas” (Sartre, 1983, p. 190), tem a percepção de que tudo que o cerca se lhe apresenta como “demais”, incluindo sua própria existência, no entanto, mesmo o suicídio resulta para ele como injustificável, uma vez que, em sua concepção, isto também seria demais, “Mas até mesmo minha morte teria sido demais... eu era demais para a eternidade” (Sartre, 1983, p. 190). Por este prisma, Lúcio supera Roquentin, pois se este sonha a morte, aquele a realiza; mas qual foi então a forma encontrada pelo personagem de Sartre para lidar com a náusea? Há uma sugestão de que a literatura em si seria a forma encontrada por Sartre para subjugar a náusea, “algo que não existe, que estaria acima da existência. Uma história, por exemplo, como as que não podem acontecer, uma aventura” (Sartre, 1983, p. 258), segundo Gerd Bornhein, esta solução é apenas momentânea pois a arte seria apenas um artifício que não chegaria a figurar uma saída para a cond ição humana, pois esta saída, se é que ela existe, deveria coincidir com a assunção do homem, “A rigor, porém, o problema fica em suspenso, e o livro termina com um talvez” (Bornhein, 2003, p. 25). Há ainda em ambos os romances um forte questionamento sobre a temporalidade existencial, metaforizada no romance de Godoy pelo ato repetitivo e infindável de acasalamento das lesmas sob um círculo, com as quais Lúcio sonha continuamente. Essa percepção do tempo, que se escoa lentamente, é também simbolizada pela náusea, no entanto a música funciona para Roquentin como uma espécie de remédio momentâneo que integra o passado ao presente, fazendo com que a náusea desapareça, “tão forte é a necessidade desta música: nada pode interrompê- la, nada desse tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria no momento preciso” (Sartre, 1983, p. 42). A existência ou a inexistência do ser e das coisas é definida unicamente através do tempo, pois se o passado já não existe, o futuro ainda não existe e o presente é a simples transição entre ambos, apreendê- lo seria impossível, é desta forma que Lúcio define enigmaticamente o nada: “Se uno o princípio e o fim, nada começa, nada termina. Nem existe” (Godoy, 2002, p. 98).

 

Conclusão

Mediante a tudo que já foi exposto anteriormente, inferimos ter atingido o objetivo proposto neste trabalho. Podemos perceber que o romance do escritor goiano demonstra claramente a influência do pensamento sartreano, de tal forma que chegamos em alguns momentos a correlacionar o conflito existencial vivido pelos personagens centrais dos dois romances, ainda que o enredo destas narrativas seja totalmente distinto. Nesta perspectiva compreendemos ser inegável a influência do pensamento existencialista e a abordagem das questões relacionadas à filosofia niilista na construção do romance As lesmas. É preciso ressaltar, no entanto que não pretendemos aqui esgotar as possibilidades de análise desta obra, mas apenas contribuir para o crescimento e valorização da pesquisa no meio acadêmico.


Referências Bibliográficas

1. Bornhein, Gerd. 2003. Sartre. São Paulo: Perspectiva.
2. Godoy, Heleno. 2002. As lesmas. Goiânia: Asa Editora.
3. Gomes, M. Raimunda. 2005. A ficção brasileira pós- 64. Goiânia: Ed. da UCG.
4. Sartre, Jean-Paul. 1983. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
5. Silva, Franklin Leopoldo. 2004. Ética e literatura em Sartre . São Paulo: UNESP.

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