5 de set. de 2011

SÓCRATES: O PRIMEIRO NIILISTA DA EUROPA.

socratesÉ também entre os gregos, mais exatamente na figura de Sócrates, que Nietzsche encontrará, pela primeira vez, os instintos de criação dando lugar aos instintos de negação da vida através de toda uma fabulação construída unicamente a partir da racionalidade. Contra o homem artista e criador aparece, segundo Nietzsche, o homem teórico, por meio de uma inversão operada por Sócrates no sentido mesmo da arte trágica. Nesta consideração parece residir um ponto fundamental a partir do qual é possível considerar a fonte de procedência do movimento niilista em sua forma ainda embrionária, mas bastante eficiente quanto aos expedientes utilizados e resultados obtidos.

 

Em contraposição à exuberância e à força dos gregos da tragédia, o movimento de  negatividade surge como processo de dissolução engendrado pela recusa do trágico e se desenvolve até a modernidade na sua forma mais acabada de niilismo. Esse modo de vida dos gregos da época trágica permanecerá, no pensamento de Nietzsche, como símbolo da grandeza e força humanas que devem retornar como forma de redimir o homem do grande cansaço de uma longa trajetória existencial dominada por valores niilistas, que o lançaram num completo desprezo do mundo e de si. É somente a partir de uma recusa das condições da efetividade e do modo como os gregos da época trágica consideravam a vida que o niilismo começa a surgir no registro da história do pensamento ocidental, escamoteado pela busca incondicional da verdade empreendida pela figura do homem teórico (cf. GT/NT, § 15).

 

Esse primeiro registro histórico do niilismo inscrito nas pretensões do socratismo-platonismo, segundo a genealogia nietzscheana, só ganha pleno sentido na medida em que, colocado diante das condições anteriores ao seu surgimento, ou seja, as manifestações da compreensão trágica dos gregos, nele se apresentam os mecanismos que constituem o sentido da vida para além das condições de toda efetividade e por ele se constrói um tipo de homem guiado unicamente pela razão, à qual é dado um privilégio na decisão por aquilo que tem valor “em-si” e cujo objetivo é tão somente empreender uma incansável busca da verdade.

 

É nessa dimensão de um movimento que está apenas começando e se instituindo como lugar de sustentação dos valores culturais no Ocidente que se pode apontar o niilismo como a longa história de ascensão e queda dos valores. Um dos aspectos dessa “longa história” de ascensão do movimento niilista se refere à produção do homem teórico, o homem do “ideal”, que estará intrinsecamente ligada, posteriormente, à produção do tipo “homem bom” da moral do cristianismo. É somente a partir da constatação de que o ideal ascético, expressão da vontade incondicional de verdade, não é senão uma resultante da avaliação moral do mundo e da vida que o niilismo ganha pleno sentido. Com efeito, é ao Sócrates moralista, “melhorador” (Verbesserer) da humanidade, que Nietzsche lança sua crítica mais refinada como meio de fazer surgir as intenções mais secretas do projeto moral desse “protótipo do otimista teórico” (GT/NT, § 15; trad. de JG).

 

De acordo com o próprio Nietzsche, ele mesmo foi o primeiro a pôr em questão o heroísmo de Sócrates e sua sapientia (GD/CI, O problema de Sócrates, § 1). Tal suspeita começa já nos escritos preparatórios* a O Nascimento da Tragédia, nos quais pretende recuperar a interpretação dionisíaca da arte soterrada pelo racionalismo socrático e que ele vê renascer para a Alemanha por meio da música de Richard Wagner**.

 

Nas considerações de Nietzsche sobre a arte trágica dos gregos, Sócrates aparece como o inaugurador de uma nova exigência: A supressão do artista em função do homem teórico. Para Nietzsche, o artista, experimentando intensamente os acontecimentos, como se não considerasse uma separação entre arte e vida, procura sempre encontrar um meio afirmativo para escapar do que considera difícil de suportar. A atividade criadora desse tipo de homem revela sua força e seu sentimento em relação à existência: ele quer sempre mais continuar vivendo e, nesse sentido, dispõe todo o seu poder de criar no enfrentamento com o terrível destino que o circunda. A criação do homem trágico é intensa e sem cálculo, sem uma finalidade que vá além da sua própria existência. Isto significa dizer que não há, para o homem trágico, uma previsão lógica que condicione sua ação. Esse tipo de homem não se pergunta acerca do que deve ou não deve fazer, como deve ou não agir, em função de algo que possa condicionar sua felicidade futura num “além-mundo”.

 

Um traço característico desse tipo criador e que estaria na base da avaliação de Nietzsche dos tipos forte e fraco, é o pathos de distância***. Todo esse esforço do homem trágico em superar as condições que considera adversas, todo o seu poder de criar outras situações de existência, tem como princípio o pathos de superioridade que se deixa revelar no modo afirmativo com que considera o sofrimento e suporta os terrores da existência. Nesse tipo de homem a vida cresce e ganha sentido em si mesma. O sentimento de superioridade e o distanciamento do pessimismo, da fraqueza, vêm de si mesmo, uma vez que se considera capaz de suportar a vida criando meios que a afirmem ao invés de negá-la.

 

O homem teórico, ao contrário, o homem socrático, segundo Nietzsche, acometido de uma incapacidade para suportar o sofrimento, vê a postulação de um fim para sua existência como meio de escapar daquilo que lhe causa um incômodo e que o faz temer diante do fato de que a vida não exime da sua dynamis o sofrimento (cf. GT/NT, § 14). Partindo dessa consideração de que o sofrimento é constitutivo da vida e não aceitando viver nessa condição, o homem teórico se coloca a tarefa de criar um desvio, um atalho que sirva de reparação à existência. A sua criação, nesse sentido, não está mais ligada a uma necessidade de intensificação e afirmação da existência, mas, ao contrário, sua criação indica um abandono da experiência trágica da vida, um redirecionamento da própria vida. A criação feita pelo homem teórico é calculável e tende a conservar a existência num estado de felicidade antecipado por uma interiorização daquilo que considera a vida feliz no futuro.

 

Esse tipo de homem cria para si uma meta, um fim a ser alcançado que garanta seu estado perpétuo de felicidade com o qual ele acredita transcender os limites da efetividade. A sua criação não se iguala à do homem trágico por se colocar contra a intensificação da existência, postulando sua conservação. Além disso, visa um retraimento da vida em função de conceitos, de uma abstração que é fruto de sua interiorização. Há, no homem teórico, o predomínio da razão em detrimento da plasticidade dos instintos que predominava no homem trágico. Mas como poderia Sócrates ser chamado de homem teórico se os diálogos platônicos mostram que ele fora bastante devotado à sua prática e ensinava “virtudes”, modos de vida capazes de dispor os indivíduos em um estado de existência que os aproximasse daquilo que ele mesmo entendia como sendo o estado de perfeição a ser alcançado?

 

Sendo a virtude a condição de existência do homem bom, o discurso socrático encerra em si um pragmatismo difícil de ser contestado. Em Sócrates percebe-se um engajamento em favor de um tipo de ação dos indivíduos no intuito de torná-los merecedores do que há de melhor para os homens: a felicidade. Ora, as condições que se estabelecem para alcançar a felicidade estão presentes na vida cotidiana desses indivíduos e a eles cabe discernir e, por vontade própria, fazer opção por aquilo que considerarem uma vida virtuosa. Entretanto, a sugestão de Nietzsche, explicitada na terceira fase de sua obra quando retoma o problema do socratismo, principalmente em Crepúsculo dos Ídolos (1888), é de que a motivação que sustenta a intenção socrática de tornar o homem um ser virtuoso é uma motivação moral, que, por sua vez, está imbricada em interesses metafísicos.

 

Tomando a dimensão da moral como terreno de onde se podem perscrutar os interesses filosóficos de Sócrates, Nietzsche aponta um elemento significativo do processo de instauração do movimento da décadence. Em contraposição à falta de objetivo da tragédia, Sócrates irá postular, para as ações humanas, uma finalidade na tentativa de buscar, por trás das ações, o sentido verdadeiro de ser virtuoso. A interiorização**** feita pelo homem teórico é interiorização dos fins a serem perseguidos. Como instrumento que capacita o homem em sua interiorização, a razão, na sua dimensão reflexiva, o faz manter, de forma clara, a simetria existente entre o fim desejado e a ação praticada. Trata-se, segundo Nietzsche, de uma pretensão em calcular o conjunto dos fenômenos da existência, separando aqueles que são dignos de serem observados e aqueles que devem ser desprezados.

 

Com efeito, ao propor que os homens devem buscar a felicidade, Sócrates parece estar operando um corte numa unidade de vida construída pelos gregos da tragédia. Se com estes há falta de objetivo, isto é, a vida não se esgota num ponto desejável em que os homens se realizariam

 

definitivamente, com Sócrates há a exigência de objetivo claro não somente para a ação, mas para os fins da vida. A vida torna-se meio de reconhecimento de um outro tipo de vida superior e cuja experiência só pode ser possível por intermédio da contemplação. Parece ser essa exigência de objetivo que coloca as intenções morais como modo de preparação para a realização plena do indivíduo numa outra esfera que a da efetividade. E é nessa perspectiva que a moral socrática aparece como expressão de valores decadentes, uma vez que a vida só tem valor como ideal de vida perfeita. Nesse sentido, podem-se apontar dois aspectos que marcam uma diferença fundamental entre as pretensões de Sócrates e a tragédia. Num primeiro, há uma finalidade da ação, nos homens da tragédia, que aponta somente para o âmbito da efetividade. A ação praticada pelo homem trágico, em quaisquer circunstâncias, é sempre tomada do ponto de vista da própria ação, uma finalidade imediata, e não de uma meta para além da ação. Nesse tipo de homem a ação não é um meio, mas um fim em si mesmo.

 

Num segundo aspecto, a dimensão tomada pelo homem teórico coloca a ação como meio de realização de algo que está muito além da própria ação. O que deve estar claro para esse tipo de homem é que a condição de sua felicidade, sua plena realização, se condiciona ao tipo de prática que assume como forma de voltar sua existência para aquela finalidade. Não é a ação pela ação, mas a finalidade fora da ação que coloca o indivíduo no caminho de busca da verdade.

 

A retomada nietzscheana do problema do sentido da vida fornecido pelo socratismo, em obras da terceira fase de seu pensamento, corroboram, no sentido moral, a compreensão exposta desde o texto de 1872 e colabora de modo significativo na compreensão daquilo que deve ser superado pelo projeto de transvaloração, isto é, os valores da décadence. Das várias passagens sobre Sócrates e Platão contidas em Crepúsculo dos Ídolos, uma chama mais atenção pelo fato de ser quase uma repetição dos termos de O Nascimento da Tragédia: “Reconheci Sócrates e Platão como sintomas de declínio, com instrumentos da decomposição grega, como falsos gregos, como antigregos (GD/CI, O problema de Sócrates, § 2; trad. de MAC).

 

Sócrates é, para Nietzsche, sintoma de uma vida que quer negar. A busca da verdade do mundo, sua realidade indissociável, significa, para Nietzsche, uma tentativa de Sócrates em curar aquilo que considera um malestar provocado pela cultura trágica. De fato, o problema do sentido da existência na cultura trágica é fortemente marcado pela ausência de uma causa transcendente que regulasse a idéia de uma finalidade última da ação e, concomitantemente, da arte. Escapar do lado obscuro da existência, da tendência dionisíaca presente no caráter essencial de todo vivente não significa fuga da realidade, mas, ao contrário, uma profunda experiência dessa tendência traduzida pelo princípio estético apolíneo (cf. GT/NT, § 3). Essa tentativa de escapar da decadência, presente também nos gregos da época trágica, se realiza numa outra dimensão no socratismo.

 

Enquanto em Sócrates há uma negação das condições de existência que afetam o homem no mundo do vir-a-ser, na tragédia há, como forma de “curar” o mal-estar, a afirmação inclusive das condições adversas da existência, como é o caso do sofrimento. O empreendimento socrático se expressa, diferentemente da tendência trágica, como tendência filosófica e científica na medida em que pretende buscar o fio da causalidade que deve ligar a ação humana a uma finalidade extrínseca, inaugurando, contra a cultura trágica, uma nova cultura radicada num princípio de constituição da realidade, cuja natureza se diferencia, em todos os seus aspectos, das divindades que fornecem o sentido da vida dos homens da época trágica:

 

Agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo,
com excesso de honradez, se não de petulância, uma profunda
representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na
pessoa de Sócrates – aquela inabalável fé de que o pensar, pelo
fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais
profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de
conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo. Essa sublime ilusão
metafísica é aditada com instinto à ciência, e a conduz sempre
de novo a seus limites, onde ela tem de transmutar-se em arte,
que é o objetivo propriamente visado por esse mecanismo
(GT/NT, § 15; trad. de JG).

 

O primeiro exercício filosófico de Sócrates foi, segundo Nietzsche, apontar o erro da arte trágica, sua ilusão, seu lado obscuro, como sendo algo que “nunca ‘diz a verdade’” (GT/NT, § 14; trad. de JG). Não se pode confiar e dar crédito a algo que não esclarece seus fins, seus objetivos. É preciso saber do que se trata na arte para daí tirar suas conseqüências. Desse modo, a arte deve expressar seu caráter desvelador. Essa seria, na visão de Sócrates, a utilidade da arte. Desvelar aquilo que está encoberto, tirar a cortina que protege o coro dionisíaco para, enfim, mostrar ao público a sua miséria, sua embriaguez e sua música desarrazoada cujo sentido não conduz ao aspecto mais fundamental da existência, ficando, ipso facto, jogado em um turbilhão de manifestações instintivas sem qualquer utilidade para a “vida”.

 

Na análise socrática da tragédia, segundo Nietzsche, Dionísio aparece como o herói derrotado, indigno de ser festejado como herói, uma vez que a sua condição expressa embriaguez e não há uma finalidade que justifique sua dimensão desarrazoada a não ser sua justificação pela figuração apolínea. A própria constituição da tendência dionisíaca funciona já como critério insustentável de proposição de fins objetivos. Em função de sua constituição ser representada pela música, Dionísio aparece como um perigo para a cultura racional na medida em que expressa o ímpeto de destruição pelo qual todo o vivente é inexoravelmente arrebatado e lançado ao puro esquecimento de todo acontecer do mundo figurativo apolíneo. É a partir das conseqüências provenientes da tendência dionisíaca que a moral socrática fará ver o perigo que representa, para o homem, uma vida constituída segundo o modelo da tragédia.

 

Segundo Nietzsche, Sócrates é um marco na história da cultura ocidental não porque trouxe a solução positiva para o que interpretou como sendo o estado de decadência do homem grego, mas porque trouxe sua ruína, seu enfraquecimento. Com Sócrates, finda o período de intensa afirmação da vida através da arte trágica e com ele se inicia um outro movimento, um outro tipo de cultura, desta feita radicada na razão, que se sustentará até a modernidade, tendo como um dos elementos fundamentais a crença num arrière-monde como forma de justificação do mundo aparente. É com Sócrates, “o herói dialético no drama platônico” (GT/NT; § 14; trad. de JG), segundo Nietzsche, que terá início o lento e agonizante processo de décadence que se estenderá à cultura moderna na sua forma mais acabada de niilismo (cf. GD/CI O que devo aos antigos, § 2). Aqui já se pode anunciar a oposição mais fundamental assinalada por Nietzsche. Não mais o apolíneo e o dionisíaco, uma vez que um está implicado no outro, mas a oposição que terá em seus pólos opostos Dionísio e Sócrates, arte trágica e arte racional. Esta é a oposição com a qual Nietzsche vê marcado o fim da época trágica e o início da época da razão, que tem sua expressão mais exemplar na figura do homem teórico.

 

Em Crepúsculo dos Ídolos (1888), a figura de Sócrates receberá uma atenção especial, por se tratar de um sintoma ímpar de décadence. E é nessa obra que o autor irá expor as armas com que Sócrates enfraqueceu a cultura trágica, tornando-a racional, e procurou melhorar os gregos em face do que ele considerava como sendo sua realidade caótica e ilusória, o que faz dele, na perspectiva nietzscheana, um filósofo décadent:

 

Eu dei a entender o que fez com que Sócrates pudesse se tornar
repulsivo: permanece tanto mais a ser esclarecido o fato de ele ter
podido produzir fascínio. Por um lado, Sócrates foi o pioneiro na
descoberta de um novo tipo de Agon: para o círculo nobre de Atenas,
ele foi o seu primeiro mestre de armas. Ele fascinou, à medida que
tocou no impulso agonístico dos helenos e que trouxe uma variante
para o cerne do embate entre dos homens jovens e rapazinhos. Sócrates também foi um grande erótico (GD/CI, O problema de
Sócrates, § 8; trad. de MAC).

 

É com o seu método, a dialética (GD/CI, O problema de Sócrates, § 5), que Sócrates estabelecerá as condições de possibilidade do verdadeiro conhecimento. É por esse método que será mostrada a saída que leva para fora da caverna. Os diálogos platônicos, conduzidos por uma perspectiva dialética, colocam Sócrates no papel do inquiridor e daquele que esclarece algo que ainda não foi bem compreendido por seus interlocutores. Ora, algo importante que a dialética socrática pretende mostrar é que não é possível viver guiado por ilusões, confiando nos instintos, ou tomando partido de um conhecimento por opinião na medida em este não conduz à verdade. Esse procedimento por meio de perguntas e respostas demonstra a Nietzsche que tudo em Sócrates “é exagerado, bufão, caricatural. Tudo é ao mesmo tempo oculto, cheio de segundas intenções” (GD/CI, O problema de Sócrates, § 4). Com isso, era preciso solucionar definitivamente esse problema que sempre aparecia aos gregos, a saber, a violência dos instintos, o mito trágico como produção de uma arte cega, irracional. Tendo permitido a entrada dos instintos dionisíacos no seu mundo, o homem grego foi visto por Sócrates como doente da alma, o homem que age “somente por instinto” (nur aus Instinct) (GT/NT, § 13) e ignora os fins essenciais da existência, a Verdade, a Justiça, o Bem etc. Era preciso, então, curar o mal que impregnava Atenas, salvar o homem da sua ignorância em relação à vida e a si mesmo. Numa palavra, era preciso “melhorá-lo”, torná-lo consciente de sua origem no Ser e lançar sua mais alta esperança para a realização num além-mundo.

 

Segundo Nietzsche, com essa pretensão, Sócrates inicia sua missão de tornar o homem consciente daquilo que mais é preciso conhecer: a verdade. De acordo com a análise de Nietzsche, é a esse empreendimento que serve a dialética socrática: dar uma solução para o problema da existência e, nesse sentido, levar os indivíduos a uma conciliação com algo interior que lhes seja comum, ou seja, a busca incondicional da verdade é o trabalho mais fundamental engendrado pela dialética socrática. “Dei a entender o que fez com que Sócrates exercesse fascínio: ele parecia um  médico, um salvador. Faz-se ainda necessário indicar o erro que repousava em sua crença na ‘racionalidade a todo preço’?” (GD/CI, O problema de Sócrates, § 11). Uma das conseqüências do método utilizado por Sócrates era levar o homem grego a uma interiorização de conceitos puros como meio de despertar o sentimento da verdade. Nesse sentido, o conhecimento de si desempenha um papel fundamental na busca da verdade na medida em que é somente a partir da tomada de consciência do poder da razão em estabelecer uma avaliação do devir que se pode projetar a necessidade de algo perene, imutável e eterno. Em contraposição à constituição de toda efetividade (Wirklichkeit), em que se percebe a impossibilidade de um ponto fixo, busca-se, por um artigo de crença (Glaube), um ser incondicionado do qual emanariam todo sentido e valor da vida (GD/CI A “razão” na filosofia, § 4). É em função dessa busca que o conhecimento, como conhecimento de algo perene, tem uma importância fundamental para a filosofia socrática: “penetrar nessas razões e separar da aparência e do erro o verdadeiro conhecimento, isso pareceu ser ao homem socrático a mais nobre e mesmo a única ocupação autenticamente humana” (GT/NT, § 15; trad. de JG).

 

Mas, afinal, pode-se perguntar: o que há de tão perigoso nessa pretensão socrática à verdade, a ponto de Nietzsche considerá-la inauguradora de um ideal decadente? O que faz com que o racionalismo socrático seja tomado como primeiro passo do movimento niilista em direção à modernidade? De acordo com a interpretação de Nietzsche, uma repulsa à vida, um tipo de pessimismo em relação à existência apareceu em Sócrates quando este descobriu que para além deste mundo existe um outro mundo, verdadeiro e eterno, onde felicidade e sofrimento se excluem. Este é o produto final da dialética socrático-platônica: o reconhecimento da verdadeira realidade; a reconciliação do homem com a verdade originária, com o seu ser. Mas isso não era o bastante. Era preciso, ainda, cumprir outra função da dialética, qual seja, explicitar a oposição existente entre o que é o verdadeiro e o que é o falso; entre a essência e a aparência (cf. GT/NT, § 15). É a partir desse dualismo essência/aparência que Nietzsche apontará, em Sócrates, o surgimento de um tipo de vida que se expressa de modo negativo e de uma fraqueza diante da existência, tendo que inventar, como otimismo teórico, uma verdade ideal. Este seria um aspecto do socratismo apontado por Nietzsche como sintoma da décadence, ou seja, da formação de um tipo humano que, após descobrir ou desvelar a verdade, conjurou o mundo como erro e condenou a vida como algo a ser justificado numa outra realidade. O tipo de vida que surge da tendência científica do socratismo-platonismo tem o seu maior alcance na modalidade de vida contemplativa de um ideal de felicidade. Contra a unidade primordial da tragédia; contra a concepção do devir enquanto uno-multiplicidade; contra a regência das divindades na dinâmica da vida, a tendência socrática inaugura um tipo de vida radicado na oposição ser/parecer; essência/aparência em que a prioridade é dada ao primeiro termo da oposição. Em última instância, o que há de novidade na tendência socrática, por um lado, é uma concepção filosófica regida “pelo fio condutor da causalidade” (GT/NT, § 15; trad. de JG), que Nietzsche denomina “a própria perversão da razão” (GD/CI Os quatro grandes erros, § 1; trad. de MAC), que deve expor à consciência ordinária dos homens o “sem-sentido” da existência na medida em que esta corresponde à lógica do devir, e, por outro, estabelecer as condições de avaliação da vida a partir da equação “Razão = Virtude = Felicidade” (GD/CI, O problema de Sócrates, § 10; trad. de MAC). Desse modo, toda avaliação feita pela tendência socrática gira em torno da oposição mundo verdadeiro/mundo aparente, ser/devir, alma/corpo, razão/instinto.

 

A oposição estabelecida por Sócrates em relação à dualidade dos mundos não traria nenhum prejuízo, nenhum mal em si mesmo, se não estivesse em jogo uma tentativa de hierarquização valorativa cujo destino marcará a história do Ocidente no que diz respeito à determinação da concepção de mundo veiculada pela filosofia e pela religião cristã. Por isso, Nietzsche pode reconhecer o estreito vínculo entre esses dois projetos de intenções subterrâneas: “Sócrates foi um mal-entendido. Toda moral fundada no melhoramento, também a moral cristã foi um mal-entendido” (GD/CI, O problema de Sócrates, § 11). O que caracteriza a oposição, no caso do socratismo, é que de um lado a essência se torna inatingível para os homens que agem “somente por instinto”. Será preciso o uso de um instrumento mais confiável, de uma faculdade sóbria para compreender que a essência do
mundo, a idéia, é um valor em si mesmo e que a sua condição de valor supremo deve funcionar como imperativo na ordem de valoração humana. Assim, o homem passa a ter um objetivo: conhecer a essência das coisas, o seu ‘ser’ verdadeiro. As considerações feitas sobre o aparecimento de uma nova modalidade de pensamento que se fundamenta na razão, “a descoberta de um novo tipo de Agon” (GD/CI, O problema de Sócrates, § 8), em detrimento do aspecto trágico com que os gregos enfrentavam os acontecimentos, revelam, mais que uma forma de pensar circunscrita ao mundo dos gregos, uma forma de vida que se consolida como projeto eficaz de formação cultural do homem ocidental. Significa dizer, a esse respeito, que o que está em jogo no projeto filosófico do socratismo-platonismo é tão somente a formação de um tipo de homem cujos anseios e expectativas, frente à existência, sejam realizados no plano de uma metafísica. Para a realização de tais anseios e expectativas, a condição de possibilidade se anuncia, prima facie, sob a forma de uma moral. Isto significa dizer que a perspectiva metafísica adotada pelo socratismo-platonismo tem como pano de fundo um interesse moral, isto é, quando Nietzsche afirma que “de fato, o mundo verdadeiro é um mundo aparente, à medida que não passa de uma ilusão ótica de ordem moral” (GD/CI A “razão” na filosofia, § 6; trad. de MAC), é justamente para mostrar que toda explicação do mundo sustentada por fundamentos metafísicos encontra sua motivação primeira num interesse moral, portanto, numa avaliação do mundo e da vida que institui uma dicotomia e a coloca, doravante, como critério de interpretação.

 

__________________________________________________

*As impressões que Nietzsche tem sobre Sócrates não começam com a obra O Nascimento da Tragédia, publicada em 1872, mas fazem parte de estudos anteriores sobre filologia clássica. Nietzsche havia preparado antes de 1872 alguns ensaios que pretendia publicar sob o titulo de “O livro do filósofo”, em que apresentava sua visão sobre alguns aspectos da cultura grega, principalmente sobre a arte trágica. O tom provocativo que aparece em O Nascimento da Tragédia com relação a Sócrates é fruto de um profundo estudo em que filologia e reflexão filosófica se misturam em O Drama musical grego, Sócrates e a tragédia e A visão dionisíaca do mundo, todos de 1870. Sobre a construção dos primeiros escritos de Nietzsche, cf. CHAVES, Ernani. Nas origens do Nascimento da tragédia. In: NIETZSCHE, F. Introdução à Tragédia de Sófocles. Trad. de Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

**No fim do ano de 1871, no prefácio de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche escreve: “A esses homens sérios sirva-lhes de lição o fato de eu estar convencido de que a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida, no sentido do homem a quem, como o meu sublime precursor de luta nesta via, quero que fique dedicado este escrito” (GT/NT, Prefácio para Richard Wagner; trad. de JG). No entanto, a partir de 1876, quando começa a romper com as influências que lhe serviam de inspiração, afasta-se de Wagner e sobre ele irá afirmar em uma obra de 1888: “O artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade, estou longe de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde – e a música, além disso! Wagner é realmente um ser humano? Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca – ele torna a música doente – ” (WA/CW, § 5; trad. de PCS).

***Essa noção de pathos de distância que aparece em relação ao nobre da tragédia será
considerada, ao longo da interpretação de Nietzsche, como o traço distintivo do homem nobre e como característica fundamental da moral de senhores. Neste traço se encontra a base de valoração dos diferentes tipos nobres e é a partir dele que o nobre cria os seus valores. Mesmo considerando que o homem fraco também tenha um pathos, o ressentimento, como seu ato criador, como será indicado mais adiante, a diferença está em que o pathos do homem nobre tem como princípio uma consciência livre do ressentimento e uma vontade de poder afirmativa. Segundo Nietzsche, “o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos” (GM/GM I, § 10; trad. de PCS).

****O que se denomina como interiorização, nesse primeiro momento, é a constante atividade reflexiva pretendida por Sócrates e Platão com o intuito de que os indivíduos possam conhecer verdadeiramente a finalidade da ação. Sendo que conhecer é recordar, segundo Platão, a interiorização conceitual feita pelos indivíduos seria o retorno da consciência ao seu lugar de origem. Essa atividade reflexiva em que o individuo re-conhece a si mesmo se liga ao processo de auto-formação ou autoconhecimento. A interiorização, nesse sentido, poderá possibilitar uma aproximação entre socratismo-platonismo e cristianismo na medida em que, com “a rebelião escrava na moral” (GM/GM, I, § 10), há um alargamento da consciência no animal-homem que faz dele não apenas um ser contemplativo, mas engajado em favor de um ideal de verdade. Isso pode significar um desdobramento da consciência que o homem adquire em favor da comunidade do rebanho cujos valores em que “a humanidade condensa os seus desejos supremos são valeurs de décadence” (AC/AC, § 6; trad. de AM).

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